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processos humanos

Este capitulo representa uma primeira tentativa de expressar uma intuição que une, numa visão abrangente, o trabalho de desenvolvimento pessoal (dentro ou fora de uma terapia), o trabalho com grupos, o desenvolvimento comunitário e social, em harmonia com a natureza. Na verdade é um só trabalho, e é ele que traz a sensação de estar vivendo algo significativo. O conceito que serve aqui como fio da meada é o de processo. Ele pode ser entendido de uma maneira mecânica, ou de um modo envolvente da pessoa, naquilo que ela tem de mais profundamente humano. Como expressão de uma intuição, preferi manter o estilo mais espon­tâneo, deixando a multiplicação de referenciais académicos para um outro momento.

O QUE É PROCESSO ..

O que vem a ser um processo terapêutico? É um fato da expe­riência cotidiana de muitos psicoterapeutas que, embora haja condições previsíveis para que seja facilitada a ocorrência de um processo terapêutico, ele nem sempre acontece. Nem sempre a pessoa se envolve, assume seu próprio crescimento, torna-se ativa em sua própria transformação. Muitas vezes o que ocorre são apenas alguns esclarecimentos sobre o problema trazido, ou mesmo pequenas modificações mais ou menos superficiais no compor­tamento da pessoa. E isso como simples consequência de o problema ter sido ventilado numa conversa a dois. Ou pode acontecer também





que as sessões tenham se transformado em uma orientação específica por parte do terapeuta. Isso até pode ser positivo, se o terapeuta tiver bom senso e sabedoria, mas não deveria mais ser chamado de psicoterapia no sentido de promoção de um processo pessoal. Este envolve mobilização mais profunda da pessoa, um envolvimento mais ativo na exploração de suas próprias vivências, que culmina num questionamento das estruturas atuais dentro das quais a pessoa age, e abre para uma forma mais produtiva de ser. E não se trata nem mesmo de uma exploração ou questionamento intelectualizado. Mas sim de um modo diferente de abordar o problema: um modo mais vivo, que recorre ao que há de mais profundo no coração humano. Quando não se chega nisso, algo deixou de acontecer. O cliente não entrou em processo. Seja porque o terapeuta não esteve à altura da tarefa que lhe cabia, seja porque isso não correspondia ao momento

do cliente.

Um "processo" não é uma coisa, um objeto ou um estado que se instala na vida de uma pessoa como algo acabado e completo. Trata-se na verdade de um movimento. É como se a pessoa tivesse estado estagnada, e agora essa estagnação se desfaz, o gelo derrete, algo começa a se mexer. No plano externo j á havia movimentos, sim, mas eram como possibilidades de uma estrutura estática. Quando o processo se instaura é a própria estrutura que se flexibiliza, se transforma. Trata-se de um movimento qualitativo da pessoa, uma mobilização interior desencadeada no contexto de uma relação interpessoal facilitadora, muitas vezes a única coisa capaz de promover mudanças de paradigma no funcionamento da pessoa. Quando o velho paradigma de funcionamento psicológico já não atende às necessidades sentidas, só mesmo uma mudança radical, com novas maneiras de ver e sentir, pode apontar saídas criativas. Mas muda o jeito como se vive o problema. Muda o modo de relação consigo mesmo, com os outros, e com o mundo. Quando isso começa a acontecer, então está ocorrendo processo.

Poderíamos dizer, quem sabe, que todas as pessoas mudam, mas que essas mudanças se dão no interior de um conjunto mais ou menos fixo de possibilidades. Quantas vezes vemos um amigo mudar de profissão, mudar de casamento, até mesmo mudar de religião, mas na realidade continuar o mesmo? Ou quantas vezes, para resolver um problema que estamos vivenciando, não é preciso mudar o modo como pensamos o problema?



Todas as relações terapêuticas são processos onde coisas acontecem, sem dúvida. Mas aqui estamos querendo falar de processo num sentido mais profundo e mobilizador. Nem sempre acontece processo em um processo terapêutico. A mesma palavra tem dois sentidos. Talvez clareássemos dizendo que no primeiro sentido se trata de processo pessoal, e no segundo, de processo relacional. Na relação terapêutica ocorrem coisas diferentes com o passar do tempo: ela é um processo relacional onde uma coisa vai decorrendo da outra, uma coisa se segue a outra com um certo encadeamento e ordem. Mas tudo isso pode não tocar a pessoa no nível que ela precisaria para superar seus problemas. O processo da relação não chegou a desenca­dear um processo pessoal. Para que isso ocorra, não basta que fatos externos mudem. É preciso que também estruturas internas se mobilizem, dissolvam-se, percam sua rigidez, ou mesmo desapa­reçam. A pessoa passa a funcionar de forma diferente. Não apenas com outra estrutura, mas com outra relação com suas estruturas. Não quero construir conceitos nesse momento, mas apenas chegar perto dessa realidade. Se o leitor puder tocá-la, isso agora basta.

OS PROCESSOS NA VIDA

Aqui surge a pergunta: só em psicoterapia ocorre processo pessoal? Todo mundo diria que não, e eu concordo. A própria vida é, ou deveria ser, um processo de transformação pessoal, muitas vezes desencadeado por modificações na estrutura e funcionamento corporal (por exemplo, as modificações que ocorrem durante a adolescência ou durante o envelhecimento), ou por modificações ambientais (cul­turais, educacionais, nas relações que vivemos). E mesmo essas duas linhas de desencadeamento (corporal e ambiental) não são absoluta­mente decisivas. A pessoa pode tomar um novo rumo de vida a partir de encontros significativos. Mas pode também aferrar-se a modos já conquistados, resistindo a qualquer tipo de mudança. Isso vai depender da história passada? Em parte sim. A história do indivíduo poderá dizer como ele reagirá diante dos desafios da vida. Mas também esse fator (a história individual) não é absolutamente determinante. Temos que deixar em aberto a possibilidade de a pessoa escolher, autodeter­minar-se, assumir sua vida, ou então, ao contrário, deixar-se levar pelas determinações externas mais ou menos mecanicamente.





A imagem que me ocorre aqui é a do veleiro. Ele é guiado pelo vento, pelas ondas, pelas correntes marítimas. Contudo o navegador tira proveito disso em favor de seu rumo de viagem. Mas também pode não ser um bom navegador, por algum motivo qualquer. E então acaba ficando à deriva, isto é, ao sabor dos ventos, das ondas e correntes marítimas.

Isso tudo quer dizer, então, o seguinte: a vida certamente é um processo relacional onde muitas coisas acontecem. Mas ela poderá deixar de ser um processo pessoal. Poderá deixar, mais ou menos, de ser um processo de descobertas pessoais, de aprendizagens verda­deiras, de encontros transformadores. E isso quando as pessoas de alguma forma se bloqueiam ao processo de viver. Executam uma vida previamente estruturada, mais do que vivem em plenitude.

Se esses bloqueios não ocorrem (ou ocorrem mas não de forma tão impeditiva) a pessoa passa por desafios existenciais no decurso de sua vida. Esses desafios caracterizam etapas de desenvolvimento que se estruturam em torno de verdadeiras crises, isto é, questionamentos de formas adquiridas, e passos existenciais para outras formas mais flexíveis de relacionamento consigo, com os outros e com o mundo. Estudando pesquisas sobre o desenvolvimento pessoal e confron­tando suas conclusões com histórias de vida, eu mesmo acabei por descrever 9 etapas possíveis para uma vida bem vivida, desde o nasci­mento até a idade avançada (cf. AMATUZZI, 2000). Não são apenas mudanças externas que aí ocorrem, mas verdadeiras transformações pessoais. Como as passagens decisivas na saga do desenvolvimento pessoal têm uma estrutura de crise, podemos dizer que ele se confi­gura como umprocesso. Muda o modo da relação da pessoa consigo mesma, com os outros e com o mundo. Ela vai se abrindo cada vez mais, seu eu se transforma, o que era rígido vai se flexibilizando e relativizando. Ou não, é claro, pois essa possibilidade de enrijeci-mento é real e frequente, ao que parece.

O que acontece quando alguém procura uma psicoterapia? Seu processo de desenvolvimento pessoal, de alguma forma, ficou bloqueado, e ela já não consegue facilmente, sozinha, dar conta de tudo que está acontecendo. Corre o risco de ficar à deriva, suas ações sendo meras consequências dos ventos, ondas, correntes marítimas. Muitas coisas acontecem em sua vida, mas ela já não sente que se tem



nas mãos, não se sente livre, sente um profundo "sufoco", mesmo que nem saiba dizer de que se trata exatamente. Seu processo pessoal está emperrado. Ela está funcionando a partir de fora somente.

O que vem a ser então a psicoterapia? Um encontro significa­tivo onde o processo pessoal possa ser desemperrado. Uma ajuda à vida, portanto. Daí a delicadeza da tarefa do terapeuta: ele não pode fazer isso pela pessoa, pois seria contraditório, deixaria de ser um processo dela. Ele não pode viver por ela. O que ele pode fazer é oferecer um clima de segurança tal em que a pessoa possa fazer isso, se quiser. E muito provavelmente ela irá querer (se encontrar esse clima relacional favorável), pois existe dentro de todos nós um impulso natural nessa direção.

A vida, se for vivida em plenitude, será um processo pessoal. Mas às vezes é preciso uma ajuda para desemperrar esse processo. E isso será, mais, uma questão de desaprender os modos que se tornaram bloqueadores, para que a vida possa se manifestar novamente.

A EXPLICAÇÃO PSICOLÓGICA DO PROCESSO

Já "tocamos" o processo. Mas como compreendê-lo em termos de psicologia? O que acontece psicologicamente quando há processo pessoal, e o que deixa de acontecer quando não há?

Teoricamente a resposta é simples. Quando há processo a pessoa está em contato consigo mesma, com o centro de si mesma. Na linguagem comum, utilizada em nossos trabalhos com grupos populares, aprendi a designar esse centro da pessoa como coração. Quando a pessoa perde contato com seu coração, ela bloqueia seu processo, e passa a funcionar mais ou menos como autómato. Mas em que consiste esse coração humano? Não é o sentimento, como é comum pensar. É algo mais profundo. É o lugar de onde nascem os sentimentos. Mas também de onde nascem os pensamentos e as decisões. É o lugar onde essas 3 coisas não se separaram ainda. Lugar do contato com o outro, com o não eu. Dependendo do que acontece nesse contato, o coração humano estará aberto ou fechado. Se houver um acolhimento e uma confiança básica, ele estará aberto e pronto para o desenvolvimento numa direção construtiva.





A vida frequentemente nos leva a perder esse contato com nosso centro (com nosso coração). Passamos então a funcionar a partir dos pensamentos (que ficam, então, rígidos como precon­ceitos), dos nossos sentimentos (que sem aquele contato com o coração ficam mais ou menos enlouquecidos) e das decisões (que, sem aquele contato com nosso íntimo, ficam duras como se fossem previamente programadas). Numa linguagem popular a restauração do contato com o centro se dá quando uma outra pessoa, com o seu coração aberto, ouve nosso coração. Reaprendemos a ouvi-lo, então. Restabelece-se o fluxo da vida. Os sentimentos, os pensamentos e as decisões estarão, agora, em harmonia entre si e com o centro. Mesmo se as circunstâncias exteriores forem difíceis.

Que exemplos poderíamos dar desse centro, ou do coração? Uma pessoa está falando insistentemente muitas coisas. Aparen­temente muda de assunto. Mas continua a falar como se não tivesse terminado de dizer, como se não estivesse satisfeita. De repente percebemos, no meio de toda aquela confusão, o que realmente ela quer dizer, e tudo faz sentido. É alguma coisa que está por trás de todo seu discurso, mobilizando-o como uma necessidade. Se algum amigo nesse momento lhe disser exatamente isso, se é que ele percebeu bem, essa pessoa ficará como iluminada. Dependendo do caso poderá até chorar de emoção. Finalmente alguém me entendeu. Recebeu e tocou meu coração, meu centro. Só se pode fazer isso com sentimento positivo, com amor, com amizade. De outra forma não se toca, mas se fere o coração. Mas quando tocado instaura-se o pro­cesso pessoal.

Muitas palavras podem expressar isso que se passa em nosso centro, a cada momento. Palavras diferentes. Mas não qualquer palavra. Algumas nitidamente não servem. Somos capazes de identificar qual serve e qual não se adapta, sem sentir dúvida. Podemos até aprofundar o significado daquilo que sentimos, e o expressarmos com outras tantas palavras. Mas quando os termos que de fato usamos não mais nomeiam o que se passa realmente conosco, então nosso falar já estará distante, já teremos perdido o contato com nosso centro.

O que faz um terapeuta? Ele proporciona oportunidade para que restabeleçamos o contato perdido com nosso centro pessoal. Mas ele só pode fazer isso a partir de seu próprio centro pessoal. O que nos abre profundamente é uma relação verdadeira, de centro a centro, de



coração aberto a coração que vai se abrindo. Sem isso, só o que ocorre são conselhos ou "truques de vida", que podem funcionar parcial­mente, mas não restabelecem o fluxo vivencial. O verdadeiro terapeuta é uma pessoa treinada para isso, mesmo em situações onde essa relação, assim tão pessoal, fica difícil.

Jean-Yves Leloup, em seu belo livro sobre Fílon de Alexan­dria, nos diz que o sentido original da palavra terapeuta não é aque­le que cura, mas aquele que cuida (LELOUP, 2000). Sempre houve "cuidadores", e é uma tremenda pretensão dizer que "terapia" é coisa moderna. Seria negar o valor de uma antiquíssima tradição. O que a Psicologia moderna fez foi olhar para isso com os olhos de um novo tipo de ciência. E, com certeza, ainda não terminou de olhar.

Há sempre algo em curso dentro de nós. Os filósofos da linguagem diriam que é uma intenção significativa, ou intenção de significar. Espécies de garrafas jogadas ao mar. Aproximarmo-nos de nós mesmos é chegar perto disso. É abrir as garrafas e dar nomes ao que tem dentro. Quando fazemos isso, entramos em processo. Nossas intenções são revestidas de palavras, e outras intenções podem então surgir. Isso é o desenvolvimento pessoal, isso é mudança de vida, ou isso é a vida prosseguindo. Quando isso acontece não estamos sós.

processos grupais

Somos como círculos concêntricos. Temos vários âmbitos. Estivemos falando de nosso âmbito estritamente pessoal, e já nele existe uma abertura para o outro. Não somos completos em nós mesmos. Vivemos como parte de um ou vários grupos. Será que podemos falar de processos grupais com a mesma profundidade com que falamos de processos pessoais?

Aquilo que acontece em nosso interior é mobilizado na pre­sença (física ou intencional) de uma outra pessoa, ou várias. Somos parte de grupos e nosso processo pessoal se dá de forma intimamente relacionada com processos grupais. Como pensar isso?

Em primeiro lugar é,preciso reconhecermos a possibilidade de processos grupais tanto no sentido profundo do termo, como no sentido mais mecânico. Processo grupal não é apenas a sequência de coisas que acontecem no grupo, uma depois da outra, uma provo-





cando a outra. Pode ser também uma mobilização do próprio modo grupal de ser, a partir das mobilizações pessoais, e integrado com elas. Nesse sentido o processo grupal é também profundamente pessoal. Um exemplo poderia esclarecer isso. Muitas vezes um grupo em que nos inserimos vai se modificando ao sabor das influências que pesam sobre ele, e não temos nenhum controle sobre isso. Uma coisa acontece depois da outra, ou por causa da outra. O grupo, como grupo, está à deriva, mesmo que as pessoas individual­mente possam manter sua liberdade individual, ao menos no sentido de poderem "deixar o barco", sair do grupo. Isso não é ainda um pro­cesso grupal; é apenas um processo de ocorrências que se abatem sobre o grupo, deixando como única margem de liberdade, as deci­sões individuais. Não há liberdade integrando pessoa e grupo. Como tal o grupo não se tem nas mãos. Isso só começa a acontecer quando as pessoas se abrem umas para as outras, a partir de seus centros, em seu íntimo. A própria estrutura do grupo, então, se relativiza. O modo de ser grupal ganha vida e vai se modificando em harmonia com as modificações pessoais. As pessoas não estão simplesmente sendo levadas pelo grupo. O coletivo passa a ser um âmbito mais alargado do pessoal. Quando as pessoas são vítimas de um "processo grupal", isso não é ainda um processo grupal. De novo temos aqui dois senti­dos para a palavra processo. Um é mais superficial, designando o que acontece de fora e se impõe às pessoas, queiram elas ou não, e outro é mais profundo, referindo-se a uma mobilização do grupo que envol­ve as pessoas naquilo que elas têm de mais humano. Quando um grupo entra em processo realmente, ele cresce muito como grupo, e ele passa a ser um instrumento de crescimento pessoal também.

Quando nos deparamos com um grupo, podemos adotar uma postura de resolver seus problemas através de dicas orientadoras. Não estamos, então, confiando no próprio processo grupal. Se, ao invés disso, propusermos uma abertura de todos a todos, a partir de seus centros pessoais (a partir do coração), então as soluções ocorrerão mas não como coisas prontas, e sim como um novo rumo mais criativo que o próprio grupo acaba assumindo. Soluções inesperadas às vezes acontecem, a partir de uma nova maneira de abordar o problema, a partir de um outro paradigma. Nesse caso não é que as pessoas se submetem ao processo grupai, mas que elas instauram o processo, a partir delas mesmas, juntamente com todos os demais. O que é importante aqui é perceber que são duas coisas



bem diferentes. Grupo e pessoas se potencializam (se enriquecem) no segundo caso, e se separam, ou se submetem um ao outro, no pri­meiro caso.

Quando as pessoas se comunicam de coração, a partir de seu íntimo, manifesta-se a alma do grupo, uma sabedoria viva que é maior que a consciência das pessoas, mas que, de certa forma, depen­de dela. Quando a comunicação flui, e sabemos nos abrir ao que se manifesta, acontecem coisas sábias que não havíamos previsto, e às quais não poderíamos chegar sozinhos. Isso é o processo grupal no melhor sentido da palavra. Ele nos ajuda como pessoas e não nos submete. Deixa de haver oposição entre liberdade pessoal e liberdade grupai. O grupo passa a ser as pessoas, funcionando em sua plenitude humana.

Assim como dissemos que existe um centro na pessoa, e que devemos estar em contato com esse centro, assim também podemos dizer que existe uma sabedoria grupal, um centro de energia grupal, que se constitui quando as pessoas se comunicam de coração aberto. Podemos estar mais ou menos abertos ao contato com esse centro grupal. Se nos fecharmos, isso significará também uma restrição à comunicação aberta, de coração a coração. E então bloquearemos o processo grupal. A abertura a esse centro grupal supõe uma renúncia ao excessivo desejo de controle racional. Na verdade, a razão é um instrumento importante, mas a serviço de outra coisa. Ela entra, mas não pode matar a confiança ou uma postura aberta a algo maior.

Como pessoas, somos profundamente solidários. É no grupo que crescemos. O verdadeiro grupo é como uma extensão de nosso âmbito pessoal. O processo grupal não é uma coisa ruim, uma espécie de mal necessário, mas uma coisa boa para nós.

processo comunitário e outros âmbitos

Somos também comunidade, grupos maiores, grupo de grupos. É um âmbito novo. Aqui também pode ou não ocorrer processo integrado. Se não, a comunidade (o social) abate-se sobre nós, fazendo-nos vítimas, deixando-nos a opção de apenas preservar nosso individualismo bem protegido. Poderíamos talvez chamar a isso de processo social, enquanto uma realidade autónoma, inde­pendente das pessoas. Mas se for processo propriamente comuni-





tário, ele também potencializa as pessoas e os grupos. A complexidade é bem maior, pois implica novas habilidades e percep­ções. Para que haja verdadeiramente processo comunitário (e não apenas uma sequência de eventos sociais), a mesma necessidade de comunicação aberta existe, e de renúncia ao excessivo controle racio­nal. Só que aqui aparecem outras características. A comunicação, mesmo sendo totalmente pessoal, não será necessariamente íntima. E nem seria possível isso no âmbito de uma vida comunitária, com uma quantidade grande de pessoas. Mas se não houver pessoalidade na comunicação, mesmo que seja no âmbito maior da comunidade, não ocorrerá processo no sentido mais profundo e integrado do termo. Por outro lado surge a política, como atenção e sensibilidade ao bem comum, e como novo âmbito de pensamento e atuação. Mas aqui também existe uma política comunitariamente vivida, que favorece as pessoas, e uma política apenas socialmente vivida, que massifica as pessoas. Esta segunda é polarizada pelas tentativas de controle. Já na primeira, existe o desejo de comunicação aberta, e a confiança no processo comunitário que envolve as pessoas.

A mesma regra que rege a ampliação dos âmbitos do pessoal ao comunitário deve chegar a incluir também o meio ambiente, a natureza, o universo, como um círculo concêntrico maior. É a ecologia. E a comunicação pessoal se estende também. Será preciso que a pessoa veja e ouça a natureza (animais, plantas, minerais...) a partir de seu centro, de seu "coração". Então instaura-se um processo ecológico, no sentido forte do termo. Sim, porque aqui também existe um sentido fraco: é a ecologia de medidas externas a que nos submetemos com fins de proteção de "nossas riquezas". A verdadeira ecologia não é meramente utilitária, mas pressupõe um senso de respeito pelo todo, e uma percepção (quase diria amorosa) de que somos parte. É uma mudança de paradigma também. Mas que não exclui o raciocínio e a técnica, obviamente. Não há oposição, mas uma visão diferente. Aqui também se pode falar, então, de processo nos dois sentidos: num sentido meramente preservacionista utili­tário (pensando exclusivamente na riqueza do homem), e num sentido mais vivo e pessoal (onde se pensa no todo, como contexto no qual nos realizamos, a partir da percepção de que somos parti­cipantes). É também quando a comunicação com a natureza se dá a partir de dentro, que podemos nos sentir verdadeiramente parti­cipantes, membros, e falar de processo ecológico propriamente



dito. E é nesse caso que o processo ecológico integra os outros âmbitos: o pessoal, o grupai, e o comunitário, dando-nos o contexto maior. Todos ocorrem ao mesmo tempo. "O que acontecer à terra acontecerá aos filhos da terra". Cuidar da terra é cuidarmo-nos de nós mesmos.

O CUIDAR

Poderíamos dizer, resumindo nosso percurso até agora, que ocorre processo pessoal quando estamos em contato com nosso centro pessoal, nosso "coração". Isso não acontecendo o processo não poderia ser chamado de pessoal propriamente dito, mas talvez apenas de relacional. Quando estamos em contato com nosso centro pessoal desencadeia-se um movimento interior, fluente, e normal­mente voltado para o crescimento. Sem esse contato somos como vítimas do processo. Com ele tomamos consistência no interior do processo. Semelhantemente, ocorre processo grupal propriamente quando os membros do grupo estão em contato com a "alma" do grupo, a sabedoria grupal, que se manifesta a partir da comunicação aberta entre eles. Isso não acontecendo as pessoas ficam sujeitas às leis da dinâmica grupal que atuam de modo mais ou menos cego. A essa situação também se chama processo grupal, mas num sentido bem diferente. Podemos falar ainda em processo comunitário, inclu­indo um âmbito maior de pessoas unidas por uma condição identitá-ria comum, por um projeto maior comum. Aqui também poderá ocorrer processo num sentido externo do termo, sem que as pessoas estejam de fato envolvidas. Para que tenha um sentido desencadeador das potencialidades humanas, a condição para o processo comunitá­rio verdadeiro seria de novo a comunicação aberta, não necessaria­mente no sentido de íntima (nesse âmbito seria impossível), mas no sentido de pessoal, a partir do centro, e possivelmente instrumentali­zada por estruturas intermediárias facilitadoras. Estamos no âmbito do político como referente à "polis" (cidade, nação). Poderá ocorrer somente um jogo de forças que tende a submeter as pessoas, ou um verdadeiro processo político envolvente das pessoas inteiras. Deve­mos falar ainda de processo ecológico. E ele ocorre quando as pesso­as se sabem e se sentem participantes do todo que inclui a natureza, o cosmos, o universo; aceitam e gostam disso. Esse sentir gera o

mauro martins a.matuz

respeito, e ações no sentido de um cuidar solidário do mundo como con­texto para a própria realização pessoal. Ocorre por fim que todos esses âmbitos estão interligados, e um não pode ocorrer plenamente

sem o outro.

O cuidar do processo pessoal, cuidar profissional, extraordi­nário, do psicólogo, tem sido chamado de psicoterapia. E sua condição básica é oferecer, na relação, um clima de segurança tal que o processo pessoal natural possa se desbloquear e seguir seu rumo. O cuidar do grupo é também delicado, e supõe a promoção de comunicações abertas e verdadeiras entre as pessoas. Um grupo natural que funciona bem, tem cuidadores naturais dentre seus participantes. O cuidar da comunidade não tem sido distinguido por uma profissão especial. Talvez os políticos devessem ser isso. Mas, nas circunstâncias concretas em que nos encontramos, eles dificilmente não são contaminados pela busca do poder. Nos meios populares fala-se de agentes comunitários. Deveriam ser pessoas que, por sua própria maneira de ser, fomentam a comunicação aberta entre todos, o que, no nosso ambiente atual, supõe muita disponi­bilidade interior, e ao mesmo tempo perspicácia para não se deixar engolir e anular pêlos jogos de poder. Para a ecologia existem técnicos. Mas o cuidar do processo ecológico, como o nível máximo de abrangência dos processos humanos, não tem propriamente um profissional designado. Não bastam técnicos, nem políticos. Se as pessoas, na condição básica de pessoas, não estiverem envolvidas, não haverá processo propriamente dito, mas uma simples sequência de acontecimentos materiais dos quais seremos mais vítimas do que agentes.

É curioso notar que, na medida em que se parte para os campos mais abrangentes, a especificação profissional vai se diluindo progressivamente, até que, por fim, não exista um profissional específico. E no entanto esse vem a ser um de nossos principais desafios atuais: cuidar de nosso desenvolvimento de forma integrada. E dele pouco se fala, ou, tudo de que se fala não tem relação direta com ele, uma vez que as formações profissionais têm sido predo-minantemente técnicas. Nos níveis mais abrangentes muitos profissionais têm uma função importante. Mas o que em definitivo atua são pessoas envolvidas na prática, através de uma ação lúcida e amorosa (partindo do coração). E a formação para esse tipo de prática só pode se dar também de forma prática: fazendo, e examinando a



por uma psicologia humana

experiência. Todo resto, por mais importante que seja, é acessório. Até mesmo o psicólogo, em seu fazer profissional de promover processos pessoais, deve levar em conta que nenhum desses âmbitos humanos tem consistência completa independentemente dos outros, e que se ele não for uma pessoa, antes de ser qualquer coisa, nada de verdadeiro e profundo ocorrerá.

CRIANDO BOLSÕES DE HUMANISMO

Todos nos preocupamos com a sociedade em que vivemos. A humanidade está em guerra contra ela mesma. A violência está aí e nos assusta a todos. Acusamo-nos mutuamente, denunciamos instân­cias impessoais, procuramos culpados. Os que dão um passo além perguntam-se o que é possível fazer além de se proteger ou fugir. Creio que alguns fatos fáceis de se ver podem nos ajudar a compreen­der o que se passa.

Somemos todas as possibilidades de emprego formal que existem numa cidade. Se este número for aproximadamente igual ao da população ativa, teremos uma cidade razoavelmente equilibrada. Todos os cidadãos terão um lugar, estarão trabalhando em paz. Mas se o número de possibilidades de emprego for menor que o da popu­lação ativa, muitos dos cidadãos estarão excluídos da possibilidade de trabalho. Não haverá lugar para eles naquela cidade. Pois bem, se somarmos todas as possibilidades de emprego oferecidas em todo nosso mundo atual, esse número será nitidamente muito inferior ao número de pessoas ativas para o trabalho produtivo. Esse cálculo já foi feito e chegou-se a essa conclusão. Há mais gente no mundo do que ofertas de trabalho previstas. E isso, evidentemente, é mais gritante em regiões subdesenvolvidas como a América Latina. Não há espaço para todos.

Somemos agora o produto interno bruto de todos os países do mundo, isto é, todas as riquezas de fato produzidas no mundo. Esse cálculo também já foi feito. E o resultado foi que esse montante global de riqueza, se fosse dividido por todas as pessoas que existem no mundo, seria suficiente para que cada uma vivesse de forma digna.





Há riqueza para todos viverem dignamente. Mas isso não acontece. Nossa sociedade é organizada para beneficiar somente a alguns. Não a todos. É uma contradição que gera os conflitos em que

vivemos.

Se acrescentarmos a isso as formas de comunicação que tornam o nosso mundo uma aldeia global, e que no fundo veiculam a mensagem de que cada um deve procurar a solução para os seus problemas, fica fácil imaginar o quadro final. Todos procurando soluções individuais, num tipo de organização social que não permite uma solução para todos. Daí para a crise ética, a violência, e a espo­liação dos recursos naturais, há apenas um pequeno passo, e já demos este passo. Um mundo enlouquecido pelo individualismo, pelo assalto à natureza, pela violência, pelas diferenças gritantes. Dentro desta lógica algumas pessoas consideram que não há nada a se fazer senão esperar de braços cruzados que os excluídos, que ficaram fora, se autodestruam (pois a sociedade se regula a si mesma esponta­neamente). Enquanto isso não acontece, resta a necessidade de se proteger deles: aumentam os muros e as grades.

Que tipo de processo é esse? É um processo que se abate sobre nós. Não é uma mobilização em vista de uma situação mais humana para todos. Sentimo-nos vítimas. A quem cabe cuidar para que esse processo mecânico se transforme em um processo humano e huma-nizante? Como já vimos não há profissionais especializados pari isso. Todos somos capazes, como cidadãos comuns, associando-nos uns com os outros, a partir da prática, em torno de um outro para­digma, de outra visão das coisas. Uma visão mais verdadeira, que integre os diversos âmbitos humanos. O que acontecer com a terra, acontecerá com os filhos da terra. O que acontecer com as comuni­dades, acontecerá com os seus participantes. O que acontecer com os grupos terá enorme influência sobre as pessoas. Se quisermos mudar o mundo, comecemos já, mudando-nos a nós mesmos, começando uma forma completamente diferente de nos relacionarmos.

O contexto de um processo pessoal é o grupo. O contexto de um processo grupal é a comunidade. O contexto de um processo comunitário é a terra, nossa casa. Se isolarmos esses contextos nada acontecerá, a não ser o próprio isolamento pessoal com a ilusão de auto-realização. O psicólogo que não levar isso em conta está tra­balhando com ilusões.



Pessoalmente acredito que a única saída para esse nosso mundo enlouquecido é envolvermo-nos em verdadeiras experiências comunitárias. Participar, com a vida, da criação de bolsões de humanismo. Bolsões no sentido de que aí ocorrem processos humanos integrando todos os níveis. Não no sentido de redutos fechados. Espaços abertos onde se possa experienciar um modo completamente diferente de ser. Isso pode acontecer desde já, sem esperar nada, a partir da determinação de pessoas comuns.

O psicólogo tem uma contribuição importante a dar nessa criação de comunidades. E isso porque ele pode facilitar a comuni­cação entre as pessoas. Mas ele (assim como todos os outros profis­sionais) deve começar dando o primeiro passo, como cidadão comum. Pois o que pode acontecer, se o quisermos, não depende de papel específico nenhum.

O que é então trabalhar processos humanos de forma integrada, em todos os seus âmbitos inseparáveis? É tomar a inicia­tiva e começar já a viver segundo outro paradigma. É passar a fun­cionar a partir do centro pessoal, abrindo-se ao outro. É associar-se na prática do que fazemos, e buscar o bem de todos. Se isso não fizer parte do trabalho do psicólogo, ele estará somente contribuindo para que o mundo continue a ser como é. Transcendemos a psicologia? Creio que a psicologia que não estiver atravessada por esses valores, em todos os seus níveis de inserção profissional, já não tem nada de importante a oferecer a nosso mundo.

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