Juntamente com a questão do sentido, temos também a
questão da palavra, não menos importante para caracterizar o huma
no. Nada entenderemos do "aparelho significatório" (expressão que
poderia substituir a de "aparelho psíquico") sem levar em conta a
intencionalidade e a linguagem. Esse texto foi publicado original
mente em 1992, na revista Estudos de Psicologia (PUC-Campinas),
9(3), pp. 77-96, com o título "O silêncio e a palavra". Faço aqui
pequenas alterações de detalhes apenas para melhor expressar o
que está sendo exposto. No item III, quando se trata do secundário,
houve modificações um pouco maiores, mas mesmo assim
consistiram apenas em acréscimos de algumas poucas frases
visando explicitar a relação do tema com a psicologia e a psicoterapia.
Este capítulo poderia ter o seguinte subtítulo: uma leitura de Merleau-Ponty a partir das preocupações de um psicoterapeuta. De fato, ele não pretende reconstituir o pensamento desse Merleau-Ponty em seu contexto próprio e a partir das questões que ele se colocava. Mas visa responder a uma pergunta como "em que esse filósofo nos faz pensar, a nós psicoterapeutas?", ou "em que ele pode nos ajudar a pensar nossas próprias questões?". E claro que essa elaboração pressupõe uma primeira leitura dos textos a partir da qual algumas pistas foram surgindo. Uma dessas pistas é a ideia de silêncio, não apenas como ausência de ruídos, mas como algo positivo e embrionário no plano das significações. Não pretendemos seguir todas as pistas, mas começaremos por esta.
Essa maneira de ler um autor (já falecido) não é isenta de riscos e armadilhas. Contudo penso que poderemos evitá-las se levarmos em conta que as preocupações que nos guiam não são necessariamente as do autor lido e que devemos tomar cuidado para não misturar as coisas, atribuindo a ele pensamentos que serão nossos, mesmo quando suscitados por ele.
A pesquisa foi feita basicamente em quatro textos: Fenome-nologia da Percepção (FP), A Estrutura do Comportamento (EC), Sobre a Fenomenologia da Linguagem (FL), a. Linguagem Indireta e as Vozes do Silêncio (LIVS), os quais foram citados a partir da edição em português, se bem que algumas vezes a tradução tenha sido modificada levando em conta o original francês.
Vamos formular agora, a título de hipóteses, algumas afirmações que poderão nos orientar no começo dessa leitura. Veremos depois o que os textos nos dizem a respeito.
A plena expressividade ou não da fala, ou seja, sua autenticidade, pode ser descrita a partir de sua relação com o pré-verbal que a mobiliza. Este algo que a precede e a mobiliza, posto que não-verbal, pode ser denominado, numa aproximação primeira, de silêncio. A fala é ruptura de um determinado silêncio.
Do silêncio total do viver biológico emerge uma região que vem a ser a intenção significativa (ou intenção de significar). É a essa intenção que remete a fala como à sua origem.
Quando falamos de significado, referimo-nos, na realidade, ao aspecto conceituai, abstrato, de algo que é mais vasto e, em sua concretude, envolve outros aspectos, pois é também sentimento, experiência de valor, desejo, intenção. A maneira pela qual a fala se une a esse algo mais amplo o expressa e lhe dá forma, é aquilo que lhe constitui sua significando, ou signifícatividade, digamos assim. Uma fala será tanto mais significativa, quanto mais estiver dire-tamente conectada com essa porção emergente de silêncio, que coloca o falante face a um mundo novo. Prefiro aqui o termo signifícância, ao invés de significação, porque este último é ainda limitado ao aspecto conceituai daquilo que quero dizer. Ao falar, não apenas faço signos a partir de uma intenção já pronta. Na verdade a fala autêntica decide e desencadeia algo. Ela não apenas traduz, mas cumpre, dá andamento a uma intenção, tornando-a, de certa forma, passado como mera intenção, e dando origem a novas intenções no interior de um movimento.
De que se trata, na realidade? Que silêncio é esse e como ele germina num falar? Não é a esse silêncio que importa chegar no processo terapêutico, para que ele possa ser falado e assim desen-cadear o viver criativo?
DA FALA AO SILÊNCIO
1. Eis como Merleau-Ponty fala desse silêncio:
Perdemos a consciência do que há de contingente na expressão e na comunicação, seja na criança que aprende a falar, seja no escritor que diz e pensa pela primeira vez alguma coisa, finalmente em todos aqueles que transformam em palavras um certo silêncio (FP, p. 194).
A criança que aprende a falar não apenas incorpora signos novos ao seu repertório: ela tem acesso a um novo modo de comunicação e de relação com o mundo. Esse exemplo vem ao lado daquele do escritor quando diz e pensa pela primeira vez alguma coisa, o que é diferente de simplesmente repetir o já pensado ou de fazer um novo arranjo, mas que, na verdade, nada cria de novo.
Trata-se sempre do acesso primeiro à palavra. E mesmo quando usamos para isso palavras já conhecidas, se realmente estamos dizendo algo pela primeira vez, e assim criando para nós significados, é mais verdade dizer que a fala contribui para modificar o sentido comum das palavras, do que dizer que ela é constituída por esses sentidos comuns (FP, p. 190).
Quando a fala é original ela faz evoluir a própria língua. Esses dois casos de acesso à palavra (o da criança e do escritor) são justamente exemplos de todos aqueles que transformam em palavras um certo silêncio. Um certo silêncio. Não todo silêncio, nem qualquer silêncio. Um certo. Perdemos consciência do que há de único e novo no ato realmente expressivo.
E logo em seguida Merleau-Ponty acrescenta:
Nossa vista sobre o homem permanecerá superficial
enquanto não remontarmos a esta origem, enquanto não encontrar-
mos, sob o barulho das palavras, o silêncio primordial, enquanto não
descrevermos o gesto que rompe esse silêncio (FP, p. 194).
O silêncio primordial é, por assim dizer, a alma da palavra pronunciada, é aquilo que se concretiza e adquire sentido no mundo com o discurso. A ruptura do silêncio que dá origem à fala não é propriamente a eliminação do silêncio, mas uma realização dele.
2. Merleau-Ponty dá, dentre outros, os seguintes exemplos da fala originária: a do apaixonado que descobre seu sentimento, a do escritor e do filósofo que despertam a experiência primordial anterior às tradições (FP, p. 189). Nesses exemplos o silêncio pré-verbal que mobiliza e dá vida à fala é identificado como o sentimento que o apaixonado descobre (revela-percebe) e a experiência primordial (anterior às tradições) que o escritor ou filósofo despertam (acordam, trazem à vida ou à consciência). O sentimento preexistia, mas quando descoberto ele adquire um estatuto existencial novo. À esta luz, antes de ser pronunciado, ele era um pré-sentimento. Só agora ele é assumido como tal, com esse sentido. A experiência primordial preexistia, mas só quando desperta é que ela tem acesso a um outro nível e se realiza no compromisso da pessoa. Só quando pronunciados é que sentimento e experiência adquirem sua realidade determinada e plena. Descobrir o sentimento e despertar a experiência primordial são também formas de romper o silêncio. Quando rompido o silêncio se revela pois como sentimento ou experiência. Não como conceito ou ideia. Estes mais o exprimem posteriormente do que o constituem.
3.0 silêncio está para a fala assim como a inspiração está para a obra de arte. A inspiração antes da obra é uma inquietação apenas, um determinado estado de procura, e o artista só sabe definitivamente o que ele queria pintar depois do quadro pronto. A inspiração o guia, mas não é um quadro interior. O pintar é o ato criativo. "O artista só tem um meio de se representara obra na qual trabalha: é necessário que ele a faça " (FP, p. 191). E ainda: "A expressão estética confere ao que ela exprime a existência em si" (FP, p. 193).
Com a fala autêntica ocorre algo semelhante: "A fala, naquele que fala, não traduz um pensamento já feito, mas o cumpre" (FP, p. 189). Ou:
O próprio sujeito pensante está numa espécie de ignorância de seus pensamentos enquanto não os formulou para si ou mesmo falou e escreveu, como mostra o exemplo de tantos escritores que começam um livro sem saber ao certo o que escreverão nele (FP, p. 188).
4. Dois tipos de expressão descrevem esse silêncio:
- (l) um certo vazio da consciência (FP, p. 194); um voto (dese-
jo) Instantâneo (FP, p. 194); um vazio determinado (FL, p. 134); um
írto vazio (FL, p. 134); uma certa carência que procura se preen-
her(FL,p. 194); e
. (2) intenção significativa nova (FP, p. 194); intenção de falar
(FP, p. 185); intenção significativa em estado nascente (FP, p. 207);
Inlenção significativa que põe em movimento a fala (FP, p. 194).
Eis alguns textos onde aparecem essas expressões:
Para o sujeito falante exprimir é tomar consciência; não exprime somente para os outros, exprime para que ele próprio saiba d que visa. Se a palavra quer encarnar uma intenção significativa, que é apenas um certo vazio, não é somente para recriar em outrem .a mesma falta, a mesma privação, mas ainda para saber de que há falta e privação. (...) Para a intenção significativa, voto mudo, trata-se de realizar um certo arranjo dos instrumentos já significantes ou das significações já falantes (...) suscitando no ouvinte o pressentimento de uma significação outra e nova, e, inversamente, promovendo naquele que fala ou escreve a ancoragem da significação inédita nas significações já disponíveis. (...) Exprimo quando, utilizando todos esses instrumentos já falantes, faço-os dizer alguma coisa que nunca haviam dito (FL, pp. 134-135).
A intenção significativa é mais de ordem dinâmica, do desejo, do que de ordem cognitiva, conceituai. E a fala é primeiramente o desencadeamento de algo dessa ordem dinâmica, mesmo que possam resultar daí pensamentos.
A intenção significativa em mim (como também no ouvinte
que a reencontra ao me escutar), mesmo que deva em seguida frutificar em "pensamentos", no momento é apenas um vazio determinado a ser preenchido pelas palavras - o excesso do que quero dizer sobre aquilo que já foi dito (FL, p. 134) (destaque do autor).
E na Fenomenologia da Percepção:
Da mesma forma que a intenção significativa que movimentou a palavra do outro não é um pensamento explícito, mas uma certa carência que procura se preencher, da mesma forma a retomada por mim desta intenção não é uma operação de meu pensamento, mas uma modulação sincrônica de minha existência, uma transformação de meu ser (FP, p. 194).
5.0 que precede a fala original e a habita dando-lhe vida, para Merleau-Ponty, não é o pensamento. Este se cumpre na fala. Só sabemos verdadeiramente o que pensamos quando o dizemos. O que vem antes é pois uma mobilização para falar (intenção significativa em estado nascente, desejo, carência, vazio, silêncio primordial).
A intenção de falar só se encontra numa experiência aberta, como a ebulição de um líquido, quando na densidade do ser, zonas de vazio se constituem e se deslocam para fora (FP, p. 206).
E esta mobilização lança o ser humano em outro nível, no novo em relação à natureza ou em relação ao passado. O que está em jogo é uma capacidade de auto-ultrapassamento.
(A fala falante) é aquela na qual a intenção significativa se encontra em estado nascente. Aqui a existência se polariza num certo sentido que não pode ser definido por nenhum objeto natural. (...) Esta abertura sempre recriada na plenitude do ser é o que condiciona a primeira palavra da criança como a palavra do escritor, a construção da palavra como a dos conceitos (FP, p. 207).
E em outro lugar:
É necessário pois reconhecer como fato último esta potência aberta e indefinida de significar, isto é, ao mesmo tempo de captar e de comunicar um sentido, pela qual o homem se transcende em direção a um comportamento novo, ou em direção ao outro, ou em direção a seu próprio pensamento através de seu corpo e de sua palavra (FP, p. 204).
6. Recuamos pois da fala autêntica para a intenção de falar que é um certo vazio, um desejo, um silêncio determinado, que por sua vez emerge da natureza ou do passado como um salto qualitativo pressupondo uma abertura na própria natureza. É pela fala original que o homem se transcende a si mesmo em direção a um sentido novo. Isso não é um mero movimento cognitivo. É um movimento existencial.
Reconhecemos aí alguns níveis:
• o da fala autêntica;
• o do sentimento ou experiência nomeados pela fala;
• o da intenção significativa na fala;
• o da intenção significativa em estado nascente, carência, vazio, silêncio determinado; e
• o da abertura ou potência aberta e indefinida de significar ou de se transcender.
Na verdade é difícil distinguir todos esses níveis. É nossa Consideração que incide em separado sobre "partes" de um processo em que concretamente eles estão interpenetrados. Se por vezes Conseguimos separar um momento como anterior a outro, será mais Como momento de gestação e não propriamente algo outro.
DO SILÊNCIO X FALA
l. No caminho de volta do silêncio à fala um primeiro aspecto é o do mistério da expressão. Merleau-Ponty usa expressões como "lei desconhecida" e "milagre". Em nossa arqueologia fenomenológica, partindo da fala chegamos ao silêncio e suas raízes, por camadas que se misturam. E podemos voltar. Em tudo isso descrevemos proces-
os, e nossas descrições têm certamente um referente identificável. 1as, em definitivo, não explicamos o ato expressivo.
A intenção significativa nova só se reconhece recobrindo-se de significações já disponíveis, resultadas de atos de expressão anteriores. As significações disponíveis se entrelaçam repentinamente segundo uma lei desconhecida, e de uma vez por todas um novo ser cultural começou a existir. O pensamento e a expressão constituem-se pois simultaneamente, quando nossa aquisição cultural se mobiliza a serviço desta lei desconhecida, como nosso corpo de repente se presta a uma gesto novo (...) (FP, p. 194).
E uma capacidade do corpo humano apropriar-se, em uma série indefinida de atos descontínuos, de núcleos significativos que ultrapassam e transfiguram seus poderes naturais. Este ato de transcendência se encontra primeiramente na aquisição de um comportamento, depois na comunicação muda do gesto: é pela mesma potência que o corpo tanto se abre a uma conduta nova quanto a faz compreender a testemunhas exteriores. Nos dois casos um sistema de poderes definidos de repente se decentra, se rompe e se organiza sob uma lei desconhecida, tanto ao sujeito quanto à testemunha exterior, e que se revela a eles nesse exato momento (...). A linguagem coloca o mesmo problema: uma contração da garganta, uma emissão sibilante de ar entre a língua e os dentes, uma certa maneira de movimentar nosso corpo se deixa de repente investir de um sentido
figurado, e o significam fora de nós. Isto não é nem mais nem menos milagroso que a emergência do amor no desejo, ou do gesto nos movimentos desordenados do começo da vida (FP, p. 204).
2. Como esta lei desconhecida atua? Ela trabalha sobre significações disponíveis fornecidas pela cultura, (que abstratamente consideradas constituem a língua como parte principal de um sistema de signos), reorganiza os signos em função de uma intenção significativa nova, e os fazem dizer algo que nunca antes disseram. E é por isso que as falas realmente expressivas acabam contribuindo para a própria evolução da língua.
Significações disponíveis, isto é, atos de expressão anteriores, estabelecem entre os sujeitos falantes um mundo comum ao qual a palavra tual e nova se refere (...). O sentido da fala nada mais é do que o modo como ela maneja este mundo linguístico ou como ela modula sobre este teclado de significações adquiridas (FP, p. 197).
E como foram adquiridas essas significações? Como todos os gestos significativos que lançam o ser humano no nível propriamente humano: um comportamento novo (de outra ordem de complexidade), um gesto mudo, a linguagem, como vimos no texto anterior (FP, p. 204).
(As significações se tornam disponíveis) quando, em seu tempo, foram instituídas como significações a que posso recorrer, como significações que tenho - e o foram por uma operação expressiva do mesmo tipo. (...) Exprimo quando, utilizando todos esses instrumentos já falantes, faço-os dizer alguma coisa que nunca haviam dito (FL, p. 135; cf. também FL, p. 136, e FP, p. 207).
3. _É importante ressaltar aqui o condicionamento que a língua disponível representa, para que possamos depois ultrapassá-lo na verdadeira expressão.
A língua traz consigo uma atitude, um determinado modo de se relacionar com o mundo, e suas palavras, antes de carregarem um conceito abstrato, trazem uma significação emocional presa a elas, tudo isso resultando da sedimentação dos atos expressivos que vêm constituir o conjunto de significações disponíveis.
(As diferenças entre as diversas línguas) não representam diferentes convenções arbitrárias para exprimir o mesmo pensamento, mas sim diferentes maneiras para o corpo humano de celebrar o mundo e finalmente de o viver (FP, p. 198).
Ao vivermos numa língua, portanto, somos subsidiários de toda experiência acumulada que a constitui. Isso nada mais é que a constitui. Isso nada mais é que a comunidade cultural na qual crescemos e vivemos e que evidentemente determina nossas condutas.
Isso que estamos aqui chamando de conteúdo de uma língua, um modo de ser sedimentado por ela (pela comunidade na qual Vivemos), pode se verificar até mesmo no nível das palavras. Sem dúvida as palavras denunciam um modo de recortar o mundo e portanto de se comportar. Merleau-Ponty fala da atitude que elas contem e de seu significado gestual, linguageiro, que capta uma essência emocional. E é sobre esse significado gestual que se constrói posteriormente um significado conceitual (Cf. FP, p. 190,193,197). A língua transmite diretamente, concretiza, um modo de se relacionar com o mundo (FP, p. 201).
4. Mas ao mesmo tempo que isso se relaciona com um estilo de rjlngua (a conduta aí sedimentada), relaciona-se também com estilos pessoais. Temos não só o estilo de nossa língua, mas também nossos «stilos próprios. Quanto a isso podemos dizer que cada um tem sua língua própria, constrói, com a forma que usa sua língua, seu jeito próprio (diríamos em português) de falar, o que equivale a dizer, seu jeito próprio de se relacionar ou de construir o mundo. E temos aqui um segundo nível de determinação: somos tributários não apenas da comunidade onde fomos socializados, mas também de nossa própria história pessoal.
Assim como em país estrangeiro eu começo a compreender o sentido das palavras por seu lugar num contexto de ação e participando da vida comum, do mesmo modo um texto filosófico ainda que mal compreendido, me revela ao menos um certo estilo, seja um estilo espinosista, criticista ou fenomenológico, que é o primeiro esboço de seu sentido. Começo a compreender uma filosofia deslizando-me na maneira de existir desse pensamento, reproduzindo o tom, o sotaque do filósofo (FP, p. 190).
Mas isso que vale para uma língua estrangeira e para um filósofo vale para qualquer pessoa em se tratando de fala expressiva. Nossa fala não representa o nosso mundo, mas é o que somos face ao mundo, ou é o mundo que construímos. Também aqui há uma sedimentação e uma experiência adquirida.
No caminho de volta do silêncio à fala, a intenção significativa passa por pelo menos esses níveis de determinação. Mas onde está ela então em sua pureza? Em sua pureza, dirá Merleau-Ponty, ela é apenas um certo vazio, como vimos, um voto ou desejo que vai se recobrindo de significações e determinações na medida em que vai se expressando. Se quisermos entretanto nos aproximar dela (no plano individual de qualquer discurso expressivo), ou de um pensamento universal (no plano de um discurso filosófico), para além dos estilos, é preciso que passemos pela concretude de uma determinada expressão.
Se houver um pensamento universal (para além dos estilos), será retomando o esforço de expressão e comunicação tal como foi tentado por uma língua que o obteremos, assumindo todos os equívocos, todos os deslizamentos de sentido de que uma tradição linguística é feita e que justamente medem sua potência de expressão (EC, p. 198).
Mas isso que vale para a filosofia (só chego ao universal passando pelo particular), vale também para o esforço de compreensão profunda de uma pessoa em psicoterapia. O desejo só aparece nas entrelinhas do estilo.
O que importa no momento, nessa viagem de volta do silêncio à fala, é nos darmos conta de como ele vai se revestindo de significados, passando pela cultura e pela história pessoal.
Mas se estamos considerando a fala autêntica, a expressão final não termina aí.
5. A expressão é, na verdade, um tatear em torno de algo que nunca será plenamente esgotado. O que ela faz é apontar para, realmente, mas sem se apropriar e conter plenamente. Isso será importante na hora de pensarmos a compreensão. Por ora fiquemos como algumas indicações de Merleau-Ponty.
Se ela (a língua) quer dizer e diz alguma coisa, não é porque cada signo veicule uma significação que lhe pertenceria, mas porque todos juntos aludem a uma significação, sempre em sursis se considerados um a um, e em rumo à qual eu os ultrapasso sem que nunca a contenham (FL, p. 132).
No que se refere à linguagem, se o signo se torna significante por sua relação lateral a outros, o sentido só surge então à intersecção e como no intervalo das palavras (LIVS, p. 143).
O sentido, quando é novo, não está contido pelas palavras, ias é indicado por elas, e isso mesmo representa o caminhar do ir humano. -"O que queremos dizer (...) não é senão o excesso do vivemos sobre o que já foi dito" (LIVS, p. 175).
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6. Finalmente a "determinação" última da fala autêntica. O que epresenta ela? O que ela faz, ou cumpre?
Que exprime pois a linguagem se não exprime pensamentos? Ela representa, ou melhor ela é a tomada de posição do sujeito no mundo de suas significações (...). O gesto fonético realiza, para o sujeito falante e para aqueles que o escutam, uma certa estruturação da experiência, uma certa modulação da existência, exatamente como um comportamento do meu corpo investe para mim e para o outro-os objetos que me cercam de uma certa significação (FP, pp. 203-204).
(Na potência aberta de significar) o homem se transcende em direção a um comportamento novo ou em direção ao outro ou em direção a seu próprio pensamento através de seu corpo e de sua palavra (FP, p. 204).
Tomada de posição do sujeito, estruturação da experiência, modulação da existência, transcendência em direção ao comportamento novo. Essas afirmações mostram o caráter existencial, comprometedor, envolvente, decisório da verdadeira expressão. Dizer realmente algo é tomar posição, e com isso entrar num mundo novo, pelo menos no que diz respeito a um aspecto particular. A fala autêntica depende mais do "eu posso", do que do "eu sei", diz também Merleau-Ponty (FL, p. 133). Com a fala autêntica o homem, apoiado no contexto cultural e em sua própria experiência pessoal, os transforma e os leva adiante.
No caminho de volta do silêncio à fala, encontramos pois:
• uma lei desconhecida;
• significações disponíveis que estão no sujeito como uma possibilidade corporal ou essências emocionais;
• aquilo que a língua usada contém como atitude recebida ou modo de ser (a presença da cultura);
• os estilos pessoais ou modos de ser da experiência pessoal, também como recebidos e constituintes da expressão (a presença da história pessoal);
• a expressão como um tatear em torno de um sentido nunca plenamente contido em palavras; e, finalmente
• uma tomada de posição do sujeito (que transfigura todas as determinações anteriores).
Ocorre que a maioria de nossas falas não tem essa densidade da fala verdadeiramente expressiva e nova. Como se introduz aí no mundo de nossa linguagem a fala banal, corriqueira, empírica, mais ou menos repetitiva, que não acrescenta nada nem lança a pessoa em um compromisso novo?
O SURGIMENTO DO SECUNDÁRIO
1. Tudo o que dissemos até agora refere-se à fala autêntica, aos momentos realmente expressivos da fala: a primeira fala pronunciada com sentido, cada fala onde um novo sentido se cria ou está se criando, cada fala que rompe o silêncio lançando o falante numa nova ordem. Merleau-Ponty chama a isso fala autêntica ou originária. E vimos dentre os exemplos possíveis "a fala da criança que pronuncia sua primeira palavra, a do apaixonado que descobre seu sentimento, a do 'primeiro homem que falou', a do escritor e do filósofo que despertam a experiência primordial anterior às tradições " (FP, p. 189, nt.5).
São essas falas assim densas que se identificam com o pensamento; nesses momentos expressivos a fala não traduz um pensamento já feito, mas o cumpre (FP, p. 189), ela é a efetuação do pensamento, como também diz Merleau-Ponty, e é por isso que só sei o que penso (em se tratando de pensamento novo, nascente) quando o digo, assim como um artista só sabe o que quer pintar depois que terminou o quadro, ou um poeta só sabe, em definitivo, o que quer dizer, depois que escreveu o poema. É essa fala expressão originária que desencadeia movimentos existenciais, transformadores do ser, da forma de se relacionar (e é por isso que ela interessa tanto aos terapeutas).
Ora, evidentemente nem todas as falas são assim. A maioria mesmo não o é. E o problema geral das pessoas que procuram terapia é que a desejada mobilização do ser em direção a sentidos novos está estagnada no secundário, e com ela seu existir. A pessoa não encontra o novo.
Merleau-Ponty distingue pois a fala autêntica da expressão Igunda. E as questões que nos ocorrem agora são:
a. o que é exatamente essa expressão segunda (que não cumpre tudo o que a originária cumpre), e como ela se tornou possível?
b. podemos separar claramente dois tipos de fala, uma autêntica e outra não, ou trata-se mais de duas dimensões aparentes em qualquer fala, de forma que possamos encontrar um solo de autenticidade mesmo em uma expressão segunda?
2. Vejamos então como Merleau-Ponty introduz a distinção. Um primeiro texto é o seguinte:
Há lugar, é claro, para se distinguir uma fala autêntica, que formula pela primeira vez, e uma expressão segunda, uma fala sobre falas, na qual consiste o ordinário da linguagem empírica. Somente a primeira é idêntica ao pensamento (FP, p. 189, nt. 4).
Nesse texto o que se opõe à fala autêntica é uma expressão segunda. Em outros lugares aparecem termos como fala originária opondo-se a uma fala derivada. A expressão pode ser segunda, ou derivada em relação a uma primeira. "A palavra constituída, tal como funciona na vida cotidiana, supõe preenchido o passo decisivo da expressão" (FP, p. 194).
Certamente podemos imaginar um homem que só falasse automaticamente; mas isso seria ou efeito de danos cerebrais, como no caso dos afásicos, ou então não seria uma linguagem propriamente dita, como é o caso de macacos que "aprendem a falar", ou de perturbações genéticas muito severas e no entanto compatíveis com o uso mais ou menos mecânico de algumas poucas palavras. A linguagem segunda, contudo, ao contrário disso tudo, é comum em nossa vida. É nossa linguagem ordinária, corriqueira, pela qual designamos objetos e interagimos no cotidiano. Estamos falando pois de uma possibilidade comum, não extraordinária, de quem quer que tenha tido acesso à fala.
Uma outra característica dessas falas é que elas, ainda que às vezes complexas, na verdade não trazem nada de novo. São falas que "não exigem de nós nenhum verdadeiro esforço de expressão " (FP, p. 194). Passem-me o sal, vou comprar pão, que horas são?, quanto custa? - são exemplos de falas de manutenção, e sua compreensão é
imediata por qualquer pessoa que seja da mesma comunidade linguística. São instrumentos de nosso cotidiano viver, do manuseio social de otjetos em função de nossas necessidades. E são falas sobre falas porque correspondem ao uso derivado de palavras que originariamente na comunidade foram expressivas, a serviço de necessidades também derivadas, nesse sentido que não procuram romper algum silêncio primordial. Com elas não há necessidade de significações novas. Merleau-Ponty as chama às falas banais.
Vivemos num mundo onde a palavra está instituída. Para todas essas falas banais possuímos em nós significações já formadas. Elas somente suscitam em nós pensamentos segundos; e estes, por sua vez, se traduzem em outras tantas palavras que não exigem de nós nenhum esforço verdadeiro de expressão, e não pedem de nossos ouvintes nenhum esforço de compreensão (FP, p. 194).
Num texto bem posterior Merleau-Ponty retoma a mesma diferenciação e a confirma:
Distingamos o uso empírico da linguagem já feita, e o uso criativo, de que o anterior, aliás, só pode ser um resultado. O que é palavra no sentido da linguagem empírica, isto é, a oportuna chamada'de um signo pré-estabelecido, não o é para a linguagem autêntica. É, como disse Mallarmé, a moeda gasta que se passa em silêncio de mão em mão. Inversamente, a verdadeira palavra, aquela que significa, que torna enfim presente a "ausente de todos os buques" e libera o sentido cativo na coisa, não é, aos olhos do uso empírico, senão silêncio, visto que não vai até o nome comum. A linguagem é por si mesma oblíqua e autónoma e, se lhe ocorre significar diretamente um pensamento ou uma coisa, trata-se apenas de uma capacidade secundária, derivada de sua vida interior. De fato o escritor, como o tecelão, trabalha às avessas: preocupa-se unicamente com a linguagem e em sua trilha vê-se de repente rodeado de sentido (LIVS, p. 145).
Notemos, de passagem, que aqui surgem dois sentidos novos de "silêncio". O primeiro é o da linguagem empírica, que significa mas não torna presente um sentido novo. E o silêncio com que passamos para outras mãos a moeda conhecida e gasta. Outro é o silêncio da verdadeira palavra, porque ao tornar presente um sentido novo ela não significa como os nomes comuns. É oblíqua, o sentido novo surge nas entrelinhas, e por isso mesmo esta fala faz evoluir a língua.
3. Mas como se forma essa expressão segunda, esse uso derivado da linguagem?
O ato de expressão (original) constitui um mundo linguistico e
um mundo cultural, ele faz recair no ser o que tendia para além. Daí a palavra falada que desfruta de significações disponíveis, como uma fortuna adquirida. A partir destas aquisições, outros atos de expressão autêntica (...) tornam-se possíveis (FP, p. 207).
As expressões originais se sedimentam em aquisições culturais, significações disponíveis, as quais poderão ser retomadas na linguagem empírica derivada (expressão segunda), ou então instrumentalizando expressões novas onde haverá, neste caso, uma transformação do sentido dos instrumentos culturais.
A palavra (fala) enquanto distinta da língua, é esse momento em que a intenção significativa, ainda muda e toda em ato, revela-se capaz de incorporar-se à cultura, minha e de outro, capaz de me formar e de formá-lo, transformando o sentido dos instrumentos culturais. Por sua vez torna-se "disponível" porque, retrospectivamente, nos dá a ilusão de que estava contida nas significações já disponíveis, quando na verdade, por uma espécie de astúcia ela as esposara apenas para infundir-lhes uma nova vida (FL, p. 136).
A expressão segunda, seja no sentido da linguagem empírica ordinária pela qual prosseguimos nosso cotidiano, seja no sentido de uma fala que de fato não cria um sentido novo (mesmo quando às vezes o pretenda, como é o caso do discurso circular da pessoa que procura terapia), é uma possibilidade que se insere na própria natureza da linguagem do homem.
4. E, finalmente, para alargarmos um pouco mais o âmbito de possibilidades dessa expressão segunda, citemos dois textos, um anterior e outro posterior à "Fenomenologia da Percepção".
No primeiro, para elucidar a questão das relações alma/corpo, Merleau-Ponty evoca as relações conceito/palavra. Nos dois casos não podemos separar os dois termos como se fossem duas coisas ou substâncias. Eles se unem naquilo que é o concreto: o comportamento humano (para os termos alma/corpo), e a fala viva (para os termos conceito/palavra). Esse concreto é a operação constituinte na qual percebemos depois os dois termos como "produtos separados". Assim sendo, cada grau de complexidade do comportamento
humano (operação constituinte do corpo/alma) seria corpo em relação ao grau mais complexo, e alma em relação ao menos complexo, assim como cada fala efetiva (operação constituinte do conceito/ palavra) é palavra (vocábulo) em relação a falas posteriores e conceito (pensamento) em relação a falas anteriores. Os dois pares são inseparáveis, mas os distinguimos para compreender o próprio dinamismo da operação em questão (o comportamento ou a fala). O corpo em geral, assim como a palavra (vocábulo), seria o adquirido; e a alma em geral, assim como o conceito (pensamento), seria o sentido novo que se instaura. Um não vive sem o outro, mas não são duas operações nem duas coisas, mas dois momentos de nossa consideração, necessários para compreender a complexidade da operação. Nesse contexto a expressão "linguagem empírica" aparece significando a materialidade das palavras, por oposição ao conceito/pensamento que seria o sentido. A "fala viva" e expressiva os reúne. Aí o sentido novo adquire corpo e se torna então um adquirido, disponível para operações ulteriores.
Pode-se certamente comparar as relações entre a alma e o corpo com as relações entre o conceito e a palavra vocábulo (mot), mas com a condição de se perceber, sob esses produtos separados, a operação constituinte que os une, e de se reencontrar, sob as linguagens empíricas, acompanhamento exterior ou vestimenta contingente do pensamento, a fala (parole), que é, somente ela, a efetuação do pensamento, onde o sentido se formula pela primeira vez, funda-se assim como sentido, e se torna disponível para operações ulteriores (EC, p. 243).
A fala viva citada aqui é, evidentemente, a própria operação expressiva no sentido autêntico do termo. E a linguagem empírica seria como o "corpo" dessa operação: "acompanhamento exterior ou vestimenta contingente do pensamento". É sob ela que devemos encontrar a "fala viva" se quisermos chegar ao sentido. Aqui a linguagem empírica não é, pois, sinónimo ou exemplo de fala banal, mas é algo que está presente também na fala autêntica.
Há na fala uma camada superficial que devemos ultrapassar para chegarmos ao sentido. O texto não é completamente claro a respeito, mas creio podermos dizer que, desde que se trate de fala e não de mero automatismo ou reação mecânica, podemos procurar o "vivo" que está sob a "linguagem". O tatear em torno do sentido novo que se procura pode nos parecer linguagem empírica no sentido
de expressão segunda, mas contém algo vivo, um sentido em gestação, um silêncio que procura se romper. Ora, esse parece ser o caso típico da pessoa que procura terapia: seus falares parecem maneados no secundário, um falar-sobre que não tem desencadeado o viver, mas que por já ser um tatear (quando na terapia), aponta para algo vivo.
O outro texto é bem posterior à "Fenomenologia da percepção". Ele mostra que um discurso teórico, abstrato ou mesmo técnico, pode ficar aquém do que pretende resolver se não for fruto da elaboração de uma experiência concreta, de um vivido que inclui conhecimentos, experiências anteriores, valores. Ou seja, se não for uma autêntica operação expressiva. Não basta que articule correta-mente conceitos ou fatos observados, diríamos. É preciso que tudo isso seja feito como autêntica operação expressiva. Senão perde-se a relevância, a significância. Ora, isso é também uma forma de
secundário: ficar aquém dos problemas que se desejava resolver, por mais complexo que possa ser o discurso. Um discurso científico, ou mesmo filosófico, corretos do ponto de vista formal, podem ser irrelevantes, não significantes, inoperantes diretamente, secundários. Até mesmo a ciência pode não "dizer" nada.
O que queremos dizer não se mostra, fora de toda palavra, como pura significação. Não é senão o excesso do que vivemos sobre o que já foi dito. (...) (No campo do pensamento político, por exemplo) toda ação e todo conhecimento que não passam por essa elaboração (onde entram em jogo todos os nossos conhecimentos, todas as nossas experiências e todos os nossos valores) e querem propor valores que não tenham tomado corpo em nossa história individual e coletiva, ou bem, o que dá no mesmo, escolher meios por um cálculo e por um proceder inteiramente técnico, acabam aquém dos problemas que desejavam resolver (LIVS, p. 175).
A possibilidade do secundário se instala até mesmo no interior
do discurso científico, filosófico, político ou técnico. E nesses casos o
que determina isso, como sempre, é ele não ser uma operação dire-
tamente expressiva (ou seja, estar desconectado do silêncio que é o
excesso do que vivemos sobre o que já foi dito). Mas nesse próprio
vazio, creio, podemos ver, dissimulado, o sopro da vida.
As possibilidades do secundário não se limitam pois às falas corriqueiras necessárias em nosso cotidiano. Mas se esses alargamentos são válidos, então podemos ver, até mesmo sob a lin-
guagem corriqueira, uma certa expressividade: a da manutenção do vivo. E é por isso que embora "segunda", Merleau-Ponty ainda usa o termo "expressão" quando fala de "expressão segunda".
5. Desses textos de Merleau-Ponty ficam pelo menos sugeridas algumas proposições de interesse para o psicólogo terapeuta:
a fala secundária não cria significados novos mas apenas executa (ou aplica) significados antigos. Por isso ela não exige esforço especial de expressão nem de compreensão; tanto uma como outra são imediatas (a fala "nova" exige esforço de expressão e também de compreensão);
a fala secundária é uma possibilidade decorrente da própria ; natureza da linguagem humana. Falas originais se sedimentam em significações disponíveis que são depois usadas secundariamente, e isso é necessário para a vida cotidiana;
por causa dessa possibilidade da linguagem existe também um uso secundário da capacidade de significar (a fala) que decorre de um distanciamento do silêncio originário: é possível falar assim distanciado de si, mas esta fala não envolve a pessoa como um todo e nem a compromete;
uma fala será inautêntica quando se esperaria, pelo contexto da relação onde ela se encontra, que ela fosse plenamente expressiva, e no entanto, por um mecanismo imposto pelo próprio sujeito (deliberadamente ou não), ela deixa de ser plenamente expressiva, e, de fato, naquele momento, o sujeito fica cortado de um contato com seu próprio silêncio;
no entanto, por ser apesar de tudo expressiva (embora não plenamente), a fala secundária, mesmo quando inautêntica, contém em sua concretude pistas dinâmicas para o que
poderá vir a ser autêntico ou original.
Creio que podemos acrescentar que a fala de uma pessoa que procura psicoterapia é um tatear em torno de um significado, um esforço de expressão, que no entanto não chega a ser plenamente bem-sucedido. Esse tatear, contudo, aponta para uma direção que é o novo significado em gestação. Cabe ao terapeuta favorecer essa gestação, ou ao menos não atrapalhá-la. Mas como?
A COMPREENSÃO
Compreender significa ouvir o silêncio que procura se romper com a fala.
Compreender profundamente significa ouvir o silêncio escon-
dido em qualquer fala.
Quando ouvido é que ele é realmente dito, e isso é uma mobi-lização do ser.
Ouvir não é um ato de inteligência ou do pensamento, mas uma participação existencial em um movimento de gestação ou parto no plano do sentido. É pelo conjunto de minha resposta interativa que mostro que ouvi. Ela será a elaboração de meu silêncio face ao outro
que me dirige a palavra.
Creio que os textos de Merleau-Ponty apontam para isso.
1. A compreensão vai além dos significados já conhecidos dos instrumentos falantes, ou seja, dos termos usados. Ela atinge uma fonte, o centro do discurso, um sentido novo. Com o exemplo da compreensão de um texto filosófico, ele escreve:
O fato é que temos o poder de compreender para além do que pensamos espontaneamente. Alguém só pode nos falar numa linguagem que já compreendamos: cada palavra de um texto difícil desperta em nós pensamentos que nos pertenciam antes, mas essas significações se enlaçam às vezes num pensamento novo que as remaneja totalmente; somos então transportados ao centro do livro, reencontramos a fonte (FP, p. 189).
Este ser transportado ao centro do discurso e descobrir o sentido para além dos significados parciais não é como a resolução de um problema. No problema a incógnita aparece pela sua relação com os termos conhecidos do problema, quase mecanicamente. Na compreensão de uma pessoa não é assim. Aqui é só na medida em que me aproximo do sentido que as palavras vão se mostrando como signos que realmente apontam para ele. Antes não.
Não há nisso nada de comparável à resolução de um problema, em que se descobre o termo desconhecido por meio de sua relação com termos conhecidos. Porque o problema só pode ser resolvido se for determinado, isto é, se o cotejo dos dados designar ao desconhecido um ou vários valores definidos. Na compreensão do outro, o problema é sempre indeterminado, porque somente a
solução do problema fará aparecer retrospectivamente os dados como convergentes, somente o motivo central de uma filosofia, uma vez compreendido, dá aos textos do filósofo o valor de signos adequados (FP, p. 189).
É aqui que aparece aquela nota de rodapé em que Merleau-Ponty diz que esta compreensão só se aplica à fala autêntica. Nas falas corriqueiras não há necessidade de um esforço de compreensão. Contudo, se é verdade que em expressões segundas podemos encontrar também um núcleo de autenticidade, isso que ele diz da compreensão da fala autêntica se aplica pelo menos em parte à compreensão de qualquer fala. Penso que o que muda, no caso da pessoa em terapia que tenta se expressar mas de fato não o consegue de forma satisfatória, é que os signos apontam para um centro realmente, mas eles não são ainda "adequados", e por isso a expressão não é completa.
2. Um outro texto, também sugestivo, nos diz que a leitura ou a escuta de um discurso autêntico é como um "encantamento". Somos possuídos pelo discurso, sentimos sua necessidade, embora não possamos prever onde ele vai chegar. Nem o sujeito falante pensa enquanto fala, nem o ouvinte pensa no que está ouvindo. O pensar do falante é seu próprio falar, e o do ouvinte, seu compreender. Só depois, ao final do discurso, quando o ouvinte acorda, por assim dizer, é que podem surgir pensamentos sobre o discurso.
O orador não pensa antes de falar, nem mesmo enquanto fala; sua fala é seu pensamento. Da mesma forma o ouvinte não concebe a propósito dos signos. O "pensamento" do orador é vazio enquanto ele fala, e, quando alguém lê um texto para nós, se a expressão é bem-sucedida, não teremos um pensamento à margem do próprio texto, as palavras ocupam todo nosso espírito, elas vêm preencher exatamente nossa espera e sentimos a necessidade do discurso, mas não seríamos capazes de prevê-lo e somos possuídos por ele. O fim do discurso ou do texto será o fim de um encantamento. Só então poderão surgir pensamentos sobre o discurso ou sobre o texto; antes o discurso era improvisado e o texto compreendido sem um único pensamento, o sentido estava presente em toda parte, mas em nenhum lugar posto por ele mesmo (FP, p. 190).
Este trecho enfatiza o caráter direto da compreensão. Ela não é reflexiva, somos transportados pelo discurso. O máximo que podemos fazer, creio, é não impedirmos isso. E uma forma de o
impedir seria determo-nos reflexivamente em cada palavra. Um texto
posterior de Merleau-Ponty cabe bem aqui:
O que com demasiada deliberação procuramos não o obtemos, não faltando pelo contrário ideias, valores, a quem souber absorver, meditando na vida, o que de sua fonte espontânea se libera (LIVS, p. 175).
3. Mais adiante entretanto ele fala do esforço de compreensão. A s palavras banais não exigem de nós nenhum verdadeiro esforço de compreensão. Já vimos esse texto acima. "Para todas essas falas fanais possuímos em nós significações já formadas", e essas falas banais "não exigem de nós nenhum esforço verdadeiro de expressão, e não pedem de nossos ouvintes nenhum esforço de compreensão " (FP, p. 194). Não há oposição entre o caráter direto da compreensão e o fato de que às vezes ela exige esforço. O que se acrescenta aqui como característica do compreender, quando ele exige esforço, é que ele supõe uma abertura para o novo, que é coisa que não é necessária no simples caso da linguagem ordinária, Podemos então acrescentar essa abertura para o novo como uma outra característica da compreensão.
4. É preciso citar de novo aqui um texto que também já lemos, onde essa abertura para o novo vai aparecer como um movimento do próprio ser, uma transformação mais global, portanto, do que a de um simples pensamento.
(Na compreensão da fala de outra pessoa) não é primeiramente com representações ou com o pensamento que eu me comunico, mas com um sujeito falante, com um certo estilo de ser e com o mundo que ele visa. Assim como a intenção significativa que pôs em movimento a fala da outra pessoa não é um pensamento explícito, mas uma certa carência que procura se preencher, assim também a retomada por mim dessa intenção não é uma operação do meu pensamento, mas uma modulação sincrônica de minha própria existência, uma transformação de meu ser (FP, p. 194).
A retomada da intenção significativa do outro, na compreensão, não é uma operação do pensamento, e sim uma transformação mais global do ser que acompanha a mutação daquele que está se comunicando.
5. A seguir Merleau-Ponty compara a fala com o gesto, dizendo que ela é um gesto linguístico. No contexto dessa compa-
ração aparece como compreendemos o gesto. E o que gostaríamos de destacar é a reciprocidade de atos que é essa compreensão de gestos, e o fato de essa reciprocidade operativa confirmar o outro no seu significado, e a mini mesmo em minha compreensão.
A comunicação ou a compreensão dos gestos se obtém pela reciprocidade de minhas intenções com os gestos do outro, de meus gestos com as intenções legíveis na conduta do outro. Tudo ocorre como se a intenção do outro habitasse meu corpo, ou como se minhas intenções habitassem o seu (...). O gesto está diante de mim como uma pergunta: ele me indica alguns pontos sensíveis do mundo e me convida a me unir a eles. A comunicação se completa quando minha conduta encontra neste caminho seu próprio caminho. Há confirmação do outro por mim e de mim pelo outro. (...) Não compreendo os gestos do outro por um ato de interpretação intelectual (FP, pp. 195-196).
Com o gesto linguístico ocorre algo parecido. Acompanho a pessoa que se comunica em sua intencionalidade, e com isso confirmo-a em seu dizer confirmando-me em meu compreender, numa espécie de reciprocidade de pensamento em ato. Essa confirmação aqui não significa, é claro, uma concordância com o que o outro diz em termos de afirmar também suas ideias. Isso seria um pensamento segundo. Significa isso sim que quando compreendo posso pensar junto. Compreender é participar do sentido.
6. Em resumo, são características da compreensão:
• ela vai além do entendimento dos significados literais e transporta-nos para o sentido novo apontado por eles;
• ela tem um caráter direto;
• mas implica abertura para o novo, e, portanto, saída da atitude cotidiana;
• ela é uma transformação global do ser (junto com as
transformações do falante) e não apenas um ato do
pensamento; e
• implica uma reciprocidade operativa na qual os inter-
locutores se confirmam em suas intenções significativas.
Podemos comentar esse último ponto dizendo que quando essa confirmação ocorre, o silêncio se aquieta, a pessoa está como transportada para um mundo novo, e novas intenções podem começar a surgir. Esse é o movimento existencial que se procura desbloquear na psicoterapia.
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