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A psicoterapia em uma perspectiva fenomenológico-existencial

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

Introdução

PENSARA PSICOTERAPIA em uma perspectiva fenomenológico-existencial consiste em buscar uma prática clínica no método fenomenológico e compreender o existir com base na filosofia da existência, mais especificamente, aqui, no pensamento de Kierkegaard e Heidegger. A fenomenologia tomada como método substituirá outros processos também utilizados em diferentes modalidades em psicoterapia. A filosofia da existência substituirá as teorias em psi­cologia que fundamentam outras práticas clínicas. Ao abrir mão das teorias, pretende-se tomar o homem como indefinível, portanto, sem possibilidades de ser classificado a partir de axiomas ou sis1 temas explicativos da existência humana. Pretende-se, ainda, reco­nhecer a infinita abertura do homem perante o existir.

Para se situar a psicoterapia fenomenológico-existencial, cabe então chegar àquilo que fundamenta o processo psicoterapêutico nesta perspectiva. Pretende-se, então, alcançar a essência tal como pressupõe a fenomenologia, ou seja, tomando-a como consistindo

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aquilo que, uma vez ausente, o fenômeno deixa de existir. Através das reduções fenomenológicas, alcança-se a essência da psicoterapia como algo sem o qual não há o processo, chega-se à "escuta e à fala" que são imprescindíveis no processo psicoterapêutico, no qual o méto­do é o fenomenológico e um afunilamento consiste na hermenêuti­ca. É a hermenêutica, como modo de interpretação do discurso em um processo de compreensão que vai permitir a ocorrência do processo psicoterapêutico.

A clínica psicológica como foi proposta, em uma perspectiva fenomenológico-existencial, parte da premissa de que o homem se constitui no mundo: ser-no-mundo. As temáticas discutidas pela filosofia do existir tratam da vulnerabilidade do homem, do risco, da liberdade, da morte, da solidão e dos paradoxos da existência humana. A clínica psicológica, pautada nestas reflexões, vai se dar para que o homem possa se reconhecer em sua vulnerabilidade, com liberdade perante seu ser de possibilidades e não como um ente sim­plesmente dado pela sua função no mundo.

A denominação de fenomenológico deve-se ao fato de que a fenomenologia com sua máxima "às coisas em si mesmas" vai consti­tuir o modo como se investiga cada vida humana na sua existência. Como esta investigação ocorre através do diálogo, da fala; a interpre­tação, nesta perspectiva, se dá como hermenêutica fenomenológica.

Nesta perspectiva, não cabe ao psicólogo a resolução das questões que surgem no percurso da vida nem a promessa de felicidade ou de perfeição. Não há culpado nem vítima, tampouco propostas de saída para situações conflitivas. Estas promessas e soluções fazem parte do contexto de atuação da psicologia que se instaura na modernidade.

O mundo atual assume os parâmetros da modernidade. E a prática clínica predominante, por sua vez, constitui-se a partir do modelo de pensamento vigente na ciência e na sociedade moderna e suas carac­terísticas: sujeito, individualismo, consumismo, culpabilização, segre­gação, responsabilidade, compartimentalização, intimismo, espaço



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privado e crescimento. A partir destes parâmetros estrutura-se a psicoterapia moderna, tendo em mente o conceito de normalidade, a crença no potencial humano, a tendência ao desenvolvimento, as relações determinísticas, o lugar do especialista "psi" com suas carac­terísticas de neutralidade e capacidade de cura. Nesta ótica da psico­terapia, cabe o método cartesiano, no qual o positivismo constituí-se como a atitude básica daquele que detém o saber.

A psicologia moderna vai partir para a sua constituição de con­ceitos de normalidade, potencial, desenvolvimento, relações deter­minísticas, especialista "psi": neutralidade, normalização e cura. A psicologia, conforme pensada na modernidade, dá ênfase ao desen­volvimento intrapsíquico. Seguindo o modelo médico, pauta-se na modernidade e, portanto, se fecha no indivíduo e no ideal de indi­viduação a ser conquistado.

A Psicologia como ciência que se insere na modernidade, pauta­da no método de Descartes e no positivismo de Comte e os parâmetros de objetividade, determinismos, certezas, verdades inquestionáveis e universais, previsibilidade, superação, iluminismo progressivo, fundamento-razão, vai considerar:

• a angústia: como um mal que deve ser curado, a fim de cumprir a promessa da ciência moderna de que o homem encontre a felicidade eterna e o bem-estar, extraindo da natureza todos os bens que esta possa ceder ao homem;

• a técnica: como instrumental que possibilita extrair todos os recursos que o homem dispõe para maior produção. Cultura da utilidade, do progresso, da perfeição;

• o domínio do ter: ter vida e juventude eterna. Ter no senti­do de consumir, acumular. É o ter que garante o valor do homem. Ter sucesso, ascensão profissional, estudos;



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• o projeto de perfeição: a perfeição e o progresso como fim último a ser atingido. Mundo competitivo, onde o lema é: "O mundo pertence aos melhores”.Domínio da vontade: o homem é o todo-poderoso do Universo. E poder é querer. Tudo depende da vontade e da determinação. Aquele que não ascende está paralisado pela sua baixa estima, sentimen­tos de inferioridade e pela sua inadequação às demandas do mundo. Se não vence é porque prefere manter-se assim, quem sabe há um ganho secundário. Desse modo, cria-se a categoria do culpado. Segundo Baptista (1999): "Fabrica-se o indivíduo";

• o potencial humano: o homem como recurso que deve dar tudo de si para o crescimento de uma nação passa a ser visto como potencial a ser desenvolvido.

Causalidade, determinismo, controle e previsibilidade são o grande objetivo dos profissionais de psicologia que se inserem no modelo moderno. Basta seguir todos os conselhos dos especialistas, exercitar todas as suas técnicas pautadas nas leis do psiquismo que o sucesso está garantido.

A psicoterapia vai ter como projeto a busca da realização pessoal, descobrindo o potencial de cada homem ou, ainda, tendo inteiro domínio de si mesmo a partir do conhecimento pleno. Aquilo que se conhece pode ser dominado.

A angústia perante o mundo que se apresenta na modernidade, ainda está fundada no princípio do consumo, pois logo é interpre­tada como falta. Falta esta que fala da necessidade de um especialista psi que pode tratar esta angústia tutelando os afetos, a sexualidade, a repressão daquele que se angustia com a falta. As psicoterapêuticas passam a fazer parte dos elementos e ser consumidos, para alcançar a felicidade eterna anunciada pela modernidade.



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O método: fenomenologia e a hermenêutica

A fenomenologia como método proposto por Husserl (1907-1958) consiste em assumir que só é possível chegar ao fenômeno indo a ele ao modo como se apresenta e não em tomar como ponto de partida sistemas de verdades com suas premissas ou hipóteses. Parte-se da redução fenomenológica como forma de não permitir o deslocamento e, assim, fazer do conhecimento um dado evidente em si mesmo. Husserl, cm um primeiro momento, identifica a fenomenologia como uma psicologia descritiva, afastando-se tanto da perspectiva idealista como da realista. Busca encontrar essências fundadas sobre a evidência e construir uma fenomenologia propria­mente dita.

Husserl (op. cit.) pretendia elaborar uma fenomenologia como atitude perante o ato de conhecer que vai consistir em:

• mostrar, no lugar de demonstrar ou apontar, os aspectos positivos;

• explicitar as estruturas vistas na experiência e não expor a lógica da estrutura ou realizar experimentos comprobatórios de uma dada situação hipotetizada;

• deixar transparecer na descrição da experiência as suas estru­turas universais ao invés de deduzir o aparente pelo que não se mostra ou corroborar atendo-se a uma perspectiva do olhar.

Assumir a práxis da psicoterapia a partir da metodologia feno­menológica implica em abster-se de qualquer tentativa de abordar o fenômeno da existência humana do ponto de vista explicativo ou inter-pretativo-psicanalítico, pois em termos de existência, acredita-se poder apenas compreender, acompanhar o existir no seu fluir no tempo.

No sentido originário, hermenêutica vem de Hermes, deus grego que não tinha casa, habitava a casa do outro sem ocupá-la. Herme-



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nêutica, no seu sentido mais próprio, significa captar uma interpre­tação dada por alguém ou uma situação sem alterar-lhe o sentido.

Friedrich Schleiermacher (1829-1999) retoma a hermenêutica com o objetivo de formular uma teoria e princípios gerais da arte da compreensão e interpretação de textos e discursos, pretendendo dar-lhe forma sistemática e geral e, simultaneamente, fundamentar as suas regras ou princípios fundamentais. Schleiermacher elabora uma teoria lançando os parâmetros de uma hermenêutica moderna.

Gadamer (1986-1998) afirma que o pressuposto de Schleiermacher consiste em:

“... cada individualidade é uma manifestarão do viver total e que por isso, cada qual trás em si um mínimo de cada um dos demais e isso estimula a adivinhação por comparação consigo mesmo”.

Este modo de compreensão consiste na tarefa da hermenêutica. O entendimento como arte visa a apreensão do discurso e, ao mesmo tempo, do pensamento do seu autor. Isto corresponde ao ideal exegético, ou seja, de reconstruir o sentido original do texto.

Dilthey (2000, p. 31) discorre sobre hermenêutica do seguinte modo:

"O compreender mostra diferentes níveis condicionados cm primeiro lugar pelo interesse. Se o interesse é limitado também será a compreen­são. Normalmente tem-se o interesse por algo na medida em que temos como importante o tema por razões práticas, sem interesse pela vida interior de quem fala. Em outros casos o interesse vai pelo gesto, pela palavra, tentando penetrar na vida interior de quem fala. No entanto, até mesmo este tipo de atenção pode chegar a converter-se em um processo técnico, no qual se alcança um grau controlável de objetividade, quando a manifestação da vida foi fixada, de modo a que sempre possamos voltar novamente a ela. Neste compreender técnico de manifestações da vida fixadas de modo duradouro denominamos exegesis ou interpretação”.



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Segundo António Gomes Ramos (Id. P. 25), compreender con­siste no

“... processo pelo qual conhecemos um interior a partir de signos dados sensivelmente desde fora" (do exterior).

Continua:

"Chamamos compreender ao processo no qual, a partir de signos dados sensivelmente, conhecemos algo psíquico do qual são sua manifestação"

(p. 27).

De acordo com Gomes Ramos, aqui está a grande contribuição de Dilthey, o interior só se torna acessível, tanto a si mesmo como aos outros, quando se objetiva exteriormente em uma expressão.

“... a compreensão se dirige a qualquer exteriorização - o signo. A inter­pretação se dirige a manifestações ou exteriorizações da vida ia fixada. A hermenêutica -«e dirige a aquelas extcriorizações fixadas por escrito, aos textos, emerge incardinada no mundo da vida humana. Quando se requer um ponto fixo sobre o qual se pode voltar, os signos exteriores passam a denominar-se manifestações ou exteriorizações cia vida. A compreensão que se transforma em técnica perde sua imediatez e natu­ralidade inicial, para adotar o artificio ou a artificialidade da interpretação”.

Enfim, cabe aqui retomar a hermenêutica de Schleiermacher que trata da arte e da técnica da interpretação e do modo como Heidegger a utiliza em Ser e tempo, uma analítica da existenciali-dade, nos termos de uma ontologia, abrindo caminho pela herme­nêutica da presença. Heidegger propõe uma hermenêutica filosófica que se afasta de qualquer tentativa de torná-la uma matéria científica, portanto, de objetivá-la e toma-la como método. O autor a desen­volve a partir de Dilthey, com sua perspectiva de historicidade, embora não assuma a posição relativista deste filósofo. Na fenome-nologia de Husserl, busca o método para o questionamento onto-



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lógico, desconsiderando sua perspectiva, a histórica. O modo como Heidegger (1926-1989) procede sua investigação é denominada hermenêutica filosófica, através da qual buscará o sentido da huma­nidade que se perdeu na modernidade, quando o sentido era dado como estando na razão. Assume uma ontologia que pretende expli­citar o ser do ente, em seu sentido mais originário do que propôs a metafísica e até mesmo a ciência. A compreensão em Heidegger consiste na captação de uma interpretação de mundo que cada um é. Implica remeter-se ao cm si mesmo da coisa, da pessoa ou de si mesmo. É um ato de captação de uma interpretação de mundo.

A questão do sentido do ser em Heidegger visa alcançar a explici-tação e o deixar transparecer este ser, a partir de uma posição prévia e adequada do ente, no que se refere ao seu ser, bem como de sua cotidianidade mediana. Parte-se do princípio que este ente, que todo homem é, tem como possibilidade em seu ser a de questionar, o que torna possível estabelecer uma investigação, o qual já possui na sua estrutura a própria compreensão e, conseqüente, interpre­tação a partir de suas possibilidades existenciais, com base na cir-cunvisão das ocupações do impessoal.

A filosofia hermenêutica, portanto, não significa interpretar a partir de referenciais externos, sejam teóricos, ou do vulgo, mas sim trazer mensagem e notícia da coisa em si mesma. A hermenêutica de Heidegger é utilizada a fim de possibilitar o emergir do ser do ente, de forma que o ser mesmo se revele e, assim, não se correr o risco de interpretar aquilo que é mostrado de acordo com as teorias e a histó­ria. Consiste, assim, em poder pensar segundo o modo do diálogo. Acredita Heidegger (1959-1990) que é a fala que dá voz à herme­nêutica. Daí aquele que investiga poder se guiar pelo próprio diá­logo. Ao permitir que a fala se dê em liberdade, permite-se também a revelação do ser. Mostrar-se a si mesmo é discursar. Discursar é acontecer ou se mostrar no sentido da entidade, isto é, da palavra, do gesto, do silêncio, enfim, do comportamento.



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Importa aqui tomar a noção de círculo hermenêutico confor­me enunciado por Schleiermacher como estrutura circular do pro­cesso de compreensão e por Heidegger como pré-compreensão c compreensão.

Segundo Sá (1998), as contribuições da hermenêutica á clínica psicológica ocorrem com relação à compreensão e à interpretação, tal como discutidas pela hermenêutica e, assim, tomadas na atuação clínica. Estas contribuições referem-se ao apoio metateórico que permitam uma relação mais livre por parte do psicólogo. Afirma Sá:

"Por tomar como objeto de reflexão a compreensão em seu sentido geral e com todos os seus contextos, possíveis, a hermenêutica caracteriza-se mais como uma abordagem filosófica metateórica do que como uma teoria especifica. No caso da clinica, apesar de muitos dos princípios da hermenêutica lerem aplicação direta, isto não significa que ela deva cons­tituir-se numa nova teoria clinica ao lado de outras. Seu papel deve ser, antes de tudo, fornecer um apoio metateorico para que o psicoterapeula tenha uma relação mais livre, isto e, mais critica e transdisciplinar com seu campo propriamente teórico, evitando assim o risco, sempre imi­nente nas universidades e escolas de formação, de tornar-se um mero aplicador de técnicas e repassador de ideologias quase nunca ou apenas precariamente tematizadas”.(pp. 8-4)

Os fundamentos filosóficos: Heidegger e Kierkegaard

Na perspectiva do pensamento existencial, tanto Kierkegaard quanto Heidegger abordam que perder-se nas solicitações do mundo é próprio do homem, na medida em que é no mundo que ele sempre se constitui. A proposta do pensamento de Kierkegaard e de Heidegger é resgatar o sentido da existência humana que se perdeu na modernidade.

Segundo Alberto Ferreira (op. cit, introdução), Kierkegaard é considerado como o precursor do pensamento existencialista pêlos seguintes motivos:



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• por deslocar a preocupação central da filosofia de sua época, que era a razão, através da qual tudo no Universo seria explicado, desde que pela própria racionalidade se resolvesse o sistema no qual os paradoxos fossem resolvidos;

• pela crença de que a existência jamais seria abarcada por um sistema explicativo nem pela racionalidade, pois o pro­blema central dela é que jamais se resolverão os paradoxos, já que o próprio existir é, por natureza, paradoxal;

• por formular as principais questões do existencialismo pre­sentes até Sartre, ou seja, buscar o sentido da existência, subs­tituindo as questões da filosofia racionalista e buscar a origem da razão e as causas e mecanismos implicados na verdade;

• por ter sido o primeiro a denominar o seu pensamento de existencialista;

• por afirmar: "o ser (existência) tem precedência sobre o conhecimento (racionalidade)".

Daí fica claro que a existência humana jamais poderia ser equa­cionada por uma expressão matemática que se constituísse como solução dos paradoxos. A existência vai se caracterizar pela condição paradoxal, portanto, não se pode postular verdades nem mesmo pretender certezas com relação a existir. Logo, constitui-se uma impossibilidade a promessa de tranquilidade para se resolver os paradoxos da existência através de um sistema, e por isso o homem está fadado a viver a angústia e o desespero. A angústia que se dá ante o real e o desconhecido e o desespero diante da ambigüidade que é própria ao existir humano.

O pensamento de Heidegger também pode ser tomado como uma tentativa de ultrapassar a metafísica e de refletir sobre as condições da existência no mundo industrial. Segundo este filósofo, a moder­nidade caracteriza-se por tomar a história do pensamento como uma iluminação progressiva que vai permitir a apropriação cada vez mais



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plena do fundamento-origem que, afinal, se encontra no pensamen­to e o acesso ao fundamento. Toma o cuidado de criticar o funda­mento e sair em busca de outros novos. Se assim fosse, recairia na ideia de "superação" que tanto caracteriza a modernidade.

Em Ser e tempo, Heidegger refere-se ao homem em sua singula­ridade com a denominação de dasein, pre-sença que, como totali­dade estrutural, se.mostra na cotidianidade mediana, imprópria e impessoal, porém, sempre como abertura para possibilidades de outras formas de expressão, autênticas, próprias e singulares. A pre­sença constitui-se num ente aberto às possibilidades, logo em liber­dade em seu modo de ser. Pode, então, se dar na impessoalidade, como no pessoal, revelar-se na inautenticidade, bem como na auten­ticidade. Na verdade, nada se estrutura como definitivo porque é a própria abertura da pre-sença, em sentido ontológico, que abre sempre às possibilidades tanto em direção a um como outro. Ao paralisar-se no modo da impessoalidade e da inautenticidade, a pre­sença tende ao fechamento. Os limites de sua abertura para o mundo restringem suas possibilidades. Na duplicidade ente e ser, a pre-sença pode esquecer-se do ser e se tomar ente. Perdido no ente, a pre-sença vive do modo como o mundo dita que deve viver. No mundo do "das man", perde-se no impessoal, no impróprio e no inautêntico. Esquece-se da liberdade de escolha no mundo das pos­sibilidades e passa a viver no "É". "É" passa a ser as propriedades que o mundo lhe atribui e o conformismo da massa.

A pre-sença, no movimento do ser e ente, clama, tomada pela angústia por ser si própria, pessoal e autêntica, por reconhecer como um ser-para-a-morte. O clamor ocorre, mesmo que sob a forma de estorvo, inquietude, silêncio ou até mesmo disfarçado nos afazeres cotidianos. Incomoda, mas salva.

Muitas vezes, ainda esquecida de sua liberdade, a pre-sença justi­fica sua apreensão pelas situações exteriores: o governo, os pais, o inconsciente, etc. Por outras, no entanto, o incômodo mobiliza-a, e



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aí vai em busca da sua possibilidade mais própria do seu ser-para-a-morte. Heidegger refere-se ao cuidado como a própria dimensão do ser da pre-sença, o pôr-se para fora, é o ec-sistir, movimento do exis­tir. O cuidado como processo de constituição da pre-sença se dá no acontecer, ou seja, no tempo. Cuidar-se constitui no exercício da pre-ocupacão com o acontecer.

O cuidado constitui-se no movimento do existir, na abertura do ser do ente. O fechamento do ser do ente, a escassez da ec-sistência significa dizer que se é mais do "ente" do que do "ontos". Uma fixa­ção maior no "ente" resulta num fechamento, passando-se a ser isto ou aquilo. Abdica-se da condição de "ontos", fecha-se na entidade, que é expressão do "ontos", mas que também o vela. O "ontos" só tem uma maneira de se dar, que é a maneira do "ente". Porém, o "ente" obscurece o "ontos". No movimento, o "ontos" mostra-se e esconde-se á maneira do "ente". A falta de'movimento caracteriza a inflexibilidade.

Soren Kierkegaard, em O desespero humano, refere-se ao deses­pero como a doença do eu e que só pode ser devidamente reco­nhecida pelo psicólogo. Considera que tanto a angústia quanto o desespero constituem-se como situações próprias da psicologia e, por­tanto, situações que cabe ao profissional da área se aprofundar.

Kierkegaard (1836-1961) aborda o eu como o movimento do exis­tir, o qual se dá pelo fato do eu se constituir em relação consigo mesmo e a relação que este vínculo estabelece com o mundo. A escassez desse movimento consiste na perda do eu que fala do homem em estado de queda. O eu perde-se quando se paralisa numa tentativa de resolver o inevitável, ou seja, a situação parado­xal da existência humana. O movimento dialético do existir humano, o "ir-e-vir", é o que constitui o eu em atividade e eterno movimento.

Na dialética da formação do eu, este se estabelece na vivência do finito e do infinito, do eterno e do temporal, da necessidade e da



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possibilidade. Diz Kierkegaard (op. cit.) que o eu perde-se quando se constitui na carência do movimento paradoxal. É "e" e não "ou" e quando diz isso está afirmando que o homem é feito de movimen­to. É "finito e infinito", é "eterno e temporal", ou seja, o eu se baseia no movimento do eterno para o temporal, do finito para o infinito e das necessidades para as possibilidades. Sempre o "e". E como se forma o eu? Pelo movimento dialético, sabendo-se sempre que a existência é um paradoxo para o qual não há resolução.

Finito e infinito refere-se à vivência do espaço. O finito como sendo o espaço da ação, do corpo e o infinito como espaço da imagi­nação. Na dialética do finito com o infinito, a mediação e o eu, a realização. Se o homem se perde na ação, ele é um ato repetitivo, caso se perca na imaginação, vai para a fantasia, não realiza, mas sem nunca se fechar porque a ação e imaginação vão estar sempre neste movimento dialético. Na tentativa de evitar o imaginário, o eu perde-se em si mesmo, no finito. Na tentativa de resolver o para­doxo, o homem perde-se, desesperando-se pelo infinito. O eu con­stitui-se neste movimento do finito para o infinito. O desespero do infinito com carência de finito, sem o "e" ou tendendo a esta carên­cia do finito. O que acontece? É o homem que se perde no infinito por ausência de finito porque não consegue o movimento de ir-e-vir. Perde o eu que é o eu imaginário, da sua invenção. A imaginação é o agente da infmitização, ê pela imaginação que ele se torna infini­to. A existência é imaginária, o sentimento é insensibilidade. O co­nhecimento é monstruoso porque se encerra em si próprio. O ima­ginário transporta o homem ao infinito, afastando-o de si mesmo, desvia seu regresso. Se o homem se perde na imaginação, sem vín­culo que o prenda com a ação, ele vive o delírio e a fantasia. Kierkegaard exemplifica:

"é como um cavador de borboletas que, na ânsia de caçar a borboleta, se perde na floresta e esquece o caminho de volta".



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O caminho de volta é a ação, permanecendo no imaginário, não se age. No imaginário, o conhecimento é monstruoso. Ele diz que é como a construção de grandes pirâmides onde o faraó, pretenden­do-se mortal, destrói vidas dos que constroem pirâmides, com objetivo de ser imortal.

No movimento das necessidades e possibilidades, o homem atua em liberdade. Quando preso ao necessário, ele não se assume livre e costuma dizer "a Deus tudo é possível" ou, então, justifica o não fazer no mundo, nos pais, ou seja, na ameaça do externo. Ao contrário, acredita que para ele tudo é possível, esquece-se dos seus limites, pensando que nada no mundo o detém. Reconhecer seus limites e arriscar nos possíveis constitui-se no eu em liberdade. No desespero da necessidade e das possibilidades, a necessidade é tudo que prende o homem ao real. As normas sociais, a cultura onde se vive, as histó­rias cultural e individual são os padrões que regem o indivíduo. O homem vive nas necessidades que limitam e nas possibilidades que o ilimitam. Conclui-se que a vivência da dialética da necessidade c da possibilidade é a vivência da liberdade, isto é, a liberdade é limitada pelas necessidades e ilimitada pelas possibilidades. Ante as necessi­dades que são o corpo, o tempo, o contexto e as normas em que se vive, tem-se os possíveis, que se escolhe. Nisto consiste a liberdade. O homem que não estabelece o movimento necessidade-possibilidade, ficando aprisionado ao necessário, paralisa naquilo que o social e as normas mandam, no que seu corpo permite, nunca aventando possi­bilidades. Com medo do risco ele se prende ao necessário e não se lança aos possíveis. Desse modo, ele passa a ser apenas uma ilusão porque no campo dos possíveis nada se realiza também.

Na fluidez do eterno e do temporal, a existência se dá numa sín­tese entre passado, presente e futuro, em que o imediato se constitui como eterno e temporal. O eu que se perde no eterno acredita-se imortal, especial. Assim, o que ocorre ao outro por certo não lhe ocorrerá. Aquele que se perde no temporal teme o tempo, se precavê



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de todas as formas possíveis, pois acredita que por uma atitude de proteção extremada poderá evitar ou adiar a sua morte. Em movi­mento, o eu se forma, assumindo a sua temporalidade e, assim, existindo em plenitude.

No eterno e temporal estão as questões mais difíceis de Kierkegaard porque quando ele fala do eterno está falando em Deus, e ao talar do temporal está falando da vida terrestre dos não-divinos. Neste aspecto, aborda-se esta questão com base em Sto. Agostinho e suas reflexões sobre o tempo. Entende-se que o eterno é a vivência do instante. O agora dá sempre a sensação de eternidade. O eu do presente dá a impressão de eternidade. Tem-se no imediato a sen­sação de que não se morre porque todos os outros morreram e o vivente se percebe vivo. Dialeticamente, tem-se a vivência do tem­poral, sabe-se que a morte é certa. Cognitivamente, pensa-se na morte dos outros, pode-se saber que a própria certamente virá. A vivência do eterno e do temporal também é dialética. Vivo-se o agora como eterno, mas sabe-se do agora como temporal, efêmero.

Se o homem se perde no eterno, acredita que, para si, tudo é pos­sível, todas as possibilidades e tudo que se passa no seu imaginário. Kierkegaard afirma que quando o homem vive a religião egocentrada, ele se crê eterno, mas na eternidade como loucura, em que se acredita que se é especial e não se morre. Mas, a vivência do tempo­ral, com carência de eterno, no seu extremo, também dá a sensação de morte iminente. E na tentativa de evitar a iminência desta morte, o homem se impede de qualquer possibilidade, atrela-se à vida sem arriscar. Daí as fobias e o pânico. O medo de que a morte logo virá. Para evitá-la, não deixa que nada ocorra para não trazer a possibili­dade da sua morte.

Kierkegaard (op. cit.) descreve também o desespero sob a catego­ria da consciência. O desespero pela consciência de ter um eu e por não tê-lo (ou o desespero inconsciente de ter um eu).



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No desespero inconsciente de ter um eu, o ser coloca-se como vítima do mundo. Tudo que lhe ocorre ou que deixa de ocorrer é porque ele teve sorte no mundo ou azar, então foi "o mundo" que o presenteou ou não. Ele não reconhece o seu eu livre, fazedor e colo­ca o seu eu como joguete do mundo. Não reconhece a ação como sua e coloca a responsabilidade por tudo que lhe sucede ao externo.

Por outro lado, no desespero consciente de ter um eu, tem-se o desafio, em que o homem luta bravamente para ser o eu da sua invenção. Desespero de ser si próprio, no qual o eu se desespera para ser algo diferente do que ê, em ação. O que ocorre? Como o eu se constitui na relação que estabelece consigo mesmo com o mundo, o eu ê si próprio e ê relação com o mundo. O eu passa a ser nesta dupli­cidade, indo e vindo, indo ao mundo e vindo a si.

No desespero de ser si mesmo, o eu se relaciona consigo próprio e se esquece cio mundo. Então ele constitui o eu da sua criação, sem relação alguma com o mundo, isola-se.

No desespero de não ser si mesmo, ele e aquilo que o mundo diz que ele deve ser. Vai para o impessoal. O tempo todo o eu baseia-se na consciência de ter um eu, ou seja, na modalidade da consciência, indo ao mundo e vindo a si próprio. E é aí que está o grande perigo, pois é muito fácil se perder no mundo, como também perder-se em si mesmo. Então, a questão ainda está no ir-e-vir.

Em O conceito de angústia, Kierkegaard também se refere a psi­cologia como matéria científica que deve se ater à temática da angústia e tenta diferenciá-la de outras áreas de estudo que se ocu­pam do pecado. Afirma que cabe a esta área de estudo não o con­teúdo do pecado, mas a sua possibilidade, já que é psicologicamente fora de contestação que a natureza do homem contém a possibili­dade do pecado. Afirma, então, que a questão a ser investigada pela psicologia é a angústia perante a possibilidade do pecado.

Kierkegaard, partindo da metáfora do pecado original - Adão e Eva -, aponta a angústia como situação que ocorre em Adão diante



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da possibilidade de escolha. O pecado original de Adão traz a cons­ciência da culpabilidade, o sofrimento e a angústia. O homem por sua natureza pecaminosa, já que lhe é dado escolher, vive na intran­quilidade. A angústia consiste no sentimento que ocorre ante a pos­sibilidade, caracterizando a situação de liberdade - o homem que é livre, é livre para o pecado. A angústia surge perante o real estabele­cido e o futuro. Tanto o pecado quanto a liberdade não se dá a par­tir de nenhuma premissa: "A liberdade é infinita e provém do nada " e "o pecado não se dá num processo contínuo como necessidade, ocorre em salto e como possibilidade."

Não deve, então, a psicologia tratar o pecado como objeto e sim como ato, devido à constante modificação que é própria do pecado. Ao homem é dada a possibilidade do pecado e a psicologia ocupa-se da existência individual que se dá em movimento, saltos de estado para estado c em cada um deles existe uma esfera de possibilidades, em igual proporção, à angústia.

A psicologia não cabe discutir eticamente o pecado, mas sim estudar as posições psicológicas da liberdade diante do pecado, a não-liberdade pela carência de interioridade ou pela não-consciência, podendo se revelar de diferentes modos:

• Hermetismo - Na posição psicológica do hermetismo, a não-liberdade se faz presente pela ausência de comunicação, já que a lin­guagem (o verbo) pode tirar o homem desta posição.

• Perda somático-psíquica da liberdade - Mostra-se por uma irritabilidade tensa, por hipocondria e até mesmo histeria. Falta interioridade que se expressa no corpo pela angústia.

• Perda pneumática da liberdade - Mantém-se a crença da certeza e da imortalidade, forma mais acentuada de não se assumir a angústia. Entende-se o eterno de modo inteiramente abstrato. O homem preso ao temporal não consegue ver concretamente seu limi­te ou imagina a eternidade de modo metafísico. A eternidade condi-



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cionada ao temporal consiste na situação que o homem teme e, por isso tenta esquivar-se e que nem deseja pensar.

A carência de interioridade, pronunciada pela angústia, possibili­ta que se alcance a consciência do eu, cujo exercício consiste numa atividade que se dá em um processo de compreensão e não em um processo mecânico. Quanto mais concreto o conteúdo da consciên­cia, mais concreta se faz a compreensão e desde que falte a cons­ciência, tem-se o fenômeno da não-liberdade.

Enfim, para se escapar da angústia e da liberdade, podem-se inventar inúmeros subterfúgios. Porém, é a angústia que constitui a possibilidade da liberdade. Nela é que surge a chance do homem constituir-se certo de sua fmitude e conhecedor de suas ilusões.

A Psicologia pautada nos pressupostos existenciais

Por fim, a psicologia pautada nos pressupostos existenciais vai considerar:

• A angústia como própria da existência humana e, portanto, insuperável - Toda e qualquer tentativa de tirar o homem de tal situação classifica-se como ilusão, entendida como acontecimento que se instaura no homem de modo que ele acredite ser aquilo que não é: imortal, quando de fato é mortal, perfeito dono e possuidor de sua vontade, quando na realidade se constitui como vulnerável, frágil e lançado às contingências.

• A técnica - Utilizada como modo de explorar todos os recursos que a natureza dispõe passa a ser substituída pela téchnè que se carac­teriza não como exploração, mas como desvelamento, deixando que a produção se dê ao seu modo.

Heidegger (1959) alerta ainda sobre o perigo do modo como a técnica moderna impõe a verdade dos entes expressa pela objetivi-



A psicorerapia em uma perspectiva fenomenológico-existencial

dade, mensurabilidade e potencial energético. Nesta perspectiva, a essência do homem fica reduzida ou se confunde com a essência da técnica. Diz, ainda, que não se trata de abandonar os avanços da tec­nologia moderna, mas de poder refletir sobre seus efeitos e dizer "sim" ou "não" à utilização dos recursos técnicos.

• O potencial humano - A ênfase estará nas possibilidades. A crença no potencial é própria do mundo técnico, em que toda a natureza é tomada como recurso a ser utilizado. A psicoterapia vai se instaurar como um modelo explicativo, em que as interpretações acerca dos insucessos vão se estabelecer pêlos critérios da moder­nidade, como no modo de ser do impessoal: espaçamento, nivela­mento e medianidade.

Sobre a realização pessoal a partir do que é valorizado pela sociedade moderna, pode-se recorrer as reflexões em Ser e tempo, em que Heidegger registra que é da constituição do ser da pre-senca o ser-si-próprio e o ser do impessoal. O impessoal deriva cio modo de ser-com e da co-pre-sença no cotidiano. No modo cotidiano do ser, o não-eu, enquanto perda do eu, constitui-se num modo do ser do próprio eu. A public-idade, como modo de ser do impessoal, encobre e obscurece o ser da pre-sença, mostrando-se como:

• Espaçamento - O ser-com como espaçamento mostra-se como impessoal que na convivência cotidiana permanece sob a tutela dos outros, os quais lhe constituem o ser, sem que ao menos este se dê conta.

• Medianidade - O ser-com constitui-se como todos no mundo, desconhece-se a si próprio, é aquilo que todos são.

• Nivelamento - O nivelamento das possibilidades do ser como tendência da medianidade se dá no ser-com.



Ana Maria Lopez Calvo de Feijão

O domínio do ter deve ser reconhecido pelo sentido do ser que se perdeu na modernidade.

O projeto de perfeição modificado pelo reconhecimento da condi­ção contingente da existência que se constitui como paradoxal.

A crença da realização do homem como conseqüência de sua vontade e plena liberdade substitui-se pelo reconhecimento de se constituir como um ser lançado no mundo, portanto, vulnerável e exposto à doença, a velhice, a morte, a fragilidade. Não mais pautar uma prática nas categorias de causalidade, determinismo, controle, previsibilidade. Em termos do existir predomina o indeterminado c o imprevisível.

Pensar em uma psicologia com base na filosofia do existir huma­no implica uma tentativa de resgatar o sentido de existência que se perdeu nos critérios da modernidade: superação, perfeição, exati-dão, consumo, apropriação, valorização do ter (acumulação).

Os mitos da beleza feminina, da juventude eterna, do melhor, do domínio da vontade, do progresso como o grande projeto do homem, a conquista pelo consumo insaciável e o domínio da técni­ca parecem constituir as grandes ilusões do homem ou toda uma parafernália que o afasta do sentido daquilo que lhe é mais próprio, que, segundo Heidegger, é o ser-para-a morte.

Jardim (Hühne, 1994), confirmando o perigo de o homem se perder no mundo, afirma que o jogo do homem com o mundo se dá em três níveis: estranhamento, domesticação e hábito.

• Estranhamento - Diz respeito ao questionamento das coisas, à perplexidade diante dos fatos e do constante mistério do ser.

• A domesticação - Determina a utilidade das coisas; situando-as no contexto das ocupações do dia-a-dia, as coisas acabam por se enquadrar no sistema de signos. Assim ocorre com a doutrina reli­giosa e a teoria científica.



A ps/corerapia em uma perspectiva fenomenologico-existencial

• O hábito - Domestica o estranho. O homem habitua-se ao mundo que ele próprio cria e toma-o como verdade, como a própria realidade. O habito constitui-se num grande perigo, quando o homem se apega à segurança e à ordem estabelecida e se esquece de meditar, questionar, refletir sobre as coisas, pensar sobre si mesmo, enfim pelo sentido.

Afirma Jardim (Op. cit. p. 34)

"É preciso, portanto, recuperar por detrás do momento hábito, o momento estranhamento. Esta recuperação se chama pensar..."

E continua (p.37):

“Cabe à filosofia e também a poesia recuperar a estranheza das coisas, mostrar que o cotidiano e o habitual, em sua aparente monotonia, esconde o mistério do ser”.

A cultura, as instituições fomentam com todos os recursos que dispõem a ilusão, desta forma mantém o hábito, não abre espaço para a reflexão. O mundo que se apresenta num ritmo frenético, em que não há tempo para pensar, diz: "Pensando morreu um burro". O tempo só dá para fazer. Um fazer impensado no qual a palavra de ordem é "consuma", "divirta-se". De acordo com Kierkegaard, é o predomínio do estágio estético.

à psicologia numa perspectiva existencialista caberia recuperar o pensamento meditante de modo a levar o homem a refletir sobre o sentido das coisas e assim não se perder no mundo da publicidade, da impessoalidade e poder resgatar a sua singularidade. Parafra­seando Baptista (1999), consiste em não fabricar o indivíduo. Exerci­tando uma preocupação (Heidegger) libertadora, e não substitutiva, permitir que o homem se dê ao seu modo, livre para si mesmo.



Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

A psicoterapia fenomenológico-existencial

Traçar um percurso psicoterapêutico através da filosofia do exis­tir implica em trilhar o caminho daqueles que levantaram suas teses sobre o existente. Buscar os fundamentos na filosofia de Kierkegaard e Heidegger é levar a cabo essa tentativa. Em Heidegger vai buscar as reflexões filosóficas através da palavra, a hermenêutica do significa­do da fala, bem como da escuta do talar da palavra e ainda sua analítica existencial que consiste num caminho no processo de com­preensão do ser-no-mundo. Acerca das contribuições de Heidegger à psicologia clinica, afirma-Sá:

"Acreditamos, portanto, que o estudo da obra de Heidegger, atento às suas possíveis conseqüências clínicas, é, ainda, uma tarefa atual e opor­tuna as temáticas que se colocam nesse campo de tendências descons-trucionistas, cuia importância, em nosso meio, há muito ultrapassou a configuração de uma demanda modista”.

A essência da psicoterapia consiste, portanto, na escuta c na tala. Sobre a fala diz Heidegger:

"O ser humano fala. Falamos acordados e nos sonhos. Falamos continua­mente: falamos inclusive quando não pronunciamos palavra alguma e quando escutamos ou lemos, falamos também quando nem escutamos ou lemos senão que efetuamos um trabalho ou nos entregamos ao ócio”. (Heidegger, 1990, p. 11).

Feijoo (2000) refere-se a Heidegger como apontando, ainda, três características indiscutíveis da fala:

• falar é expressar (pressupõe um interior que se exterioriza);

• falar é próprio da natureza humana (portanto, constitui-se como uma atividade do homem);

• falar como expressão do homem (representa o simbólico e o conceituai e expõe o real e o irreal).



A psicoterapia em uma perspectiva fenomenológico-existencial

Diz, ainda, que na fala o homem expressa seus diferentes estados de ânimo e também a sua visão do mundo, constituindo-se no seu sentido. No falar, o ser humano o faz em sua vez. Falar em sua vez é o que Heidegger (Id., p. 29) denomina

"corresponder: falar que se des-prende quando escuta. Cada palavra do talar dos mortais fala desde a escuta e enquanto escuta".

Conclui-se, portanto, que a fala compreende a fala e a escuta. Os seres humanos falam enquanto escutam e a escuta já se constitui numa fala. O corresponder compreende o des-prender, que é a escu­ta e, ao mesmo tempo, um responder. Conclui Heidegger (Id., p. 30):

"A palavra dos mortais fala enquanto de modo múltiplo corresponde".

Pensar em psicoterapia em termos de uma hermenêutica consiste em permitir que a relação terapêutica se dê em liberdade, consiste em cuidado tal como entendido por Heidegger, como acompanhar o acontecer, que na relação com outro dasein ocorre ao modo da pre-ocupação. Esta apresenta-se também cm duas possibilidades: pre-ocupação substitutiva e anteposição libertadora. Sá (1999) refere-se a essas duas formas de pre-ocupação como possíveis na atuação psicoterapêutica.

Feijoo (2000) constata que na pre-ocupação substitutiva ou subs­tituição dominadora, a psicoterapia se daria através do domínio do outro. As técnicas, neste caso, visariam resultados e o cliente seria dominado e submisso à técnica, no sentido moderno de recursos a serem explorados.

Na pre-ocupação de anteposição ou antecipação libertadora, a relação psicoterapêutica funda-se na liberdade de escolha por parte daquele que clama pelo seu ser mais próprio. Aqui se fundamenta uma proposta de relação psicoterapêutica pautada na liberdade.



Ana Maria Lopez Calvo de Feijão

De Kierkegaard extraem-se todas as suas reflexões descritas em duas de suas obras que ele próprio considera como voltadas para o psicológico: Desespero humano e O conceito de angústia. Na primeira, é desenvolvida uma proposta de constituição do eu, em que também tece considerações da perda do eu. Na segunda, considera a liberdade como um aspecto psicológico, onde a não-liberdade cons­titui-se como estado de queda. A proposta de psicoterapia consistirá em mobilizar os paradoxos da existência, uma vez que aquele que está em desespero, no sentido de lutar para resolver as ambiguidades da existência, encontra-se paralisado. Debate-se contra si mesmo. Então, cabe ao psicoterapeuta reconhecer a estagnação do cliente e, através do desvelamento, levá-lo a se reconhecer na ausência de movimento do eu. A reconhecer que a sua existência se estabelece na dialética do finito e infinito, do eterno e do temporal, do necessário e dos possíveis, da razão e da paixão, do singular e do universal do acaso e do autodeterminado. H que nem ele, tampouco nenhum outro homem se constitui como um eu fechado, pois existir sempre implica abertura. Fechar-se implica deixar de existir, nas palavras de Kierkegaard, em perda do eu.

Heidegger permite pensar na possibilidade de trazer à psicotera­pia sua filosofia quando no Zollikonner Seminare refere-se à patologia como distúrbio da liberdade e da flexibilidade do homem singular e propõe que se recorra à psicoterapia para ajudar o homem a resgatar a liberdade e a flexibilidade na sua relação com o mundo.

Têm-se nas reflexões de Heidegger a liberdade e a não-liberdade, bem como a flexibilidade, movimento do existir e a inflexibilidade, fechamento. A psicoterapia propõe-se nesta perspectiva abrir cam­inho para que a liberdade e o movimento se dêem.

O percurso psicoterapêutico vai se dar de modo que o psicotera­peuta possa assumir o lugar de mensageiro do discurso do cliente, num processo mútuo de corresponder e des-prender, tal como entendidos por Heidegger (1990) em sua perspectiva ontológica. No



A psicoterapia em ama perspectiva fenomenologico-existencial

corresponder, a fala desprende-se quando escuta. No des-prender, a escuta se dá simultaneamente com o responder. Compreende-se que é deste modo que se dá o processo de "escutas e falas" do psicote-rapeuta e do cliente.

A psicoterapia aqui proposta se dá no sentido de acompanhar esse acontecer "ontos" e "ente", no sentido do cuidado. Trata-se de uma psicoterapia que exerça o pre-ocupar-se, com o psicoterapeuta participando do acontecer do cliente. Na compreensão, cuidando do acontecer, facilita o reconhecimento do sentido mais próprio ou impróprio. Ocupar-se do acontecer cuida. Assim, entrega-se o estar-aí às possibilidades mais próprias, ao mesmo tempo em que se entrega o homem ao mundo, constituindo-se num estar-lançado.

O mundo próprio elabora-se com suas próprias possibilidades e limites. A psicoterapia, nesta perspectiva, não pensa em termos de realidade, mas de possibilidades. O psicoterapeuta prossegue no cuidado com o cliente na abertura de caminhos, restabelecendo o movimento, como acontecer, como ec-sistir.

Trata-se aqui da psicoterapia como um tornar manifesto, o que e presente ao modo da téchnè e não da técnica no sentido moderno. Não importam nesta perspectiva os resultados, embora se pense em conseqüências, pelo modo de lidar com o mundo em liberdade, assumindo suas próprias escolhas. O psicoterapeuta vai atuar como um facilitador, cuja produção vai consistir em deixar aparecer o que não transparece.

A psicologia clínica numa perspectiva fenomenológico-existencial consiste em possibilitar um pensamento meditante, abrindo a possibilidade daquele que, em angústia, clama pelo seu poder-ser mais próprio, reconhecendo-se como ser-para-a-morte, pois se encontra perdido no impróprio. Neste querer-ter-consciência possa descobrir-se em sua liberdade, tanto no que se refere à utilização das coisas quanto ao seu próprio fazer-se no mundo. Que possa, ainda, descobrir sua serenidade no "inútil" e não se angustiar para



A psicoterapia em uma perspectiva fenomertológico-existencial

se tornar um objeto de utilidade para se adequar às exigências do mundo do "Das man".

Nesta perspectiva, o psicólogo é aquele que se preocupa e se atém ao discurso do outro(s) e, para tanto, não se pauta no modelo pré-concedido do caminho que se deve seguir. Para poder ater-se a tal discurso, torna-se necessário poder agir como recomenda Kierkegaard para tirar o homem das ilusões fabricadas na cultura moderna. Vale ainda preocupar-se ao modo da libertação ou não da substituição. Estabelecer as relações deste modo pode permitir a criação de condições para que o singular surja.



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