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Problemas Psicopatológicos Contemporâneos

José A. Carvalho Teixeira


“Não se trata de saber porque é que somos livres,

mas quais são os caminhos da liberdade.”

(Jean-Paul Sartre)

1. PERTURBAR-SE É UMA POSSIBILIDADE

DO EXISTIR

A perspectiva existencial em psicopatologia

desliga-se deliberadamente das categorias psicopatológicas

e das classificações psiquiátricas (Erthal,

1999) que fragmentam a totalidade da existência

individual. Assim, as perturbações mentais são

encaradas apenas como um dos aspectos que, entre

outros, se integra na totalidade da existência do

indivíduo. As perturbações mentais aparecem com

estatuto de expressões parciais das modalidades

de construção do seu-mundo. São, portanto, um

modo de existir que, além disto, constituem uma

possibilidade humana universal.

Diferentes autores têm proposto perspectivas

diferentes sobre o significado existencial da psicopatologia.

Para Binswanger (1981, 1971), a psicopatologia

é o que se afasta da estrutura apriorística do ser,

das suas categorias ontológicas, e que se tornou

estrutura existencial modificada. Assim, o Dasein

perturbado projecta-se no mundo mostrando flexões

existenciais, isto é, tematizado numa categoria

ontológica em detrimento de outras, tornando-o

unidimensional. Uma só categoria ontológica serve

de fio condutor ao projecto de mundo, o que

restringe e limita o ser. A presença fica tematizada

(limitada) em torno de uma categoria existencial:

corporalidade (no Dasein dismorfofóbico, hipocondríaco

e bulímico); temporalidade (no Dasein

melancólico); espacialidade (no Dasein agorafóbico).

Binswanger caracterizou a presença perturbada

como extravio ou malogro da sua realização ontológica

que o tornaria opaco a si próprio, esvaziado e

limitado. Assim, a psicopatologia é o que se afasta

da estrutura apriorística do ser e que se tornou

estrutura existencial modificada: uma só categoria

da existência serve de “fio condutor” ao projecto

de mundo (tematização da existência). É uma forma

de existência frustrada na qual o indivíduo se

fecha a si mesmo, tornando-se opaco para si próprio

e perdendo a comunalidade com o mundo do outro.

Assim, a presença psicopatológica pode projectar-se

de diferentes formas: presença perdida (melancolias),

momentânea (manias), vazia (esquizofrenias), exibicionista

(histeria) e controlada (perturbação obsessivo-

-compulsiva).

Por seu turno, Boss (citado por Cardinalli, 2004),

405

Problemas psicopatológicos contemporâneos

Uma perspectiva existencial

JOSÉ A. CARVALHO TEIXEIRA (*)

(*) Médico Psiquiatra. Instituto Superior de Psicologia

Aplicada, Lisboa. Sociedade Portuguesa de Psicoterapia

Existencial.

deslocando o entendimento da doença para o entendimento

do Homem-perturbado através da

compreensão da sua experiência, considera a

psicopatologia como redução ou mesmo perda

da realização das possibilidades constitutivas

dos modos de ser do existir humano, quando este

é entendido como Dasein. Diferenciou entre ser-

-doente caracterizado por uma perturbação na

corporalidade (doenças psicossomáticas e conversão

somática histérica, por exemplo), na espacialidade

e temporalidade (estados confusionais e demências),

na espacialidade (agorafobia), no humor (mania,

depressão) e na realização do ser-aberto e da liberdade

(esquizofrenia).

Rollo May (1958), considerou que a ansiedade

patológica resultaria do indivíduo não se confrontar

com a ansiedade normal, a que deriva do confronto

com os dados da existência. Denominando-a ansiedade

neurótica, desproporcionada ao perigo, Rollo May

considerou-a como o resultado das tentativas feitas

pelo indivíduo para diminuir ou negar a ansiedade

associada ao confronto com os dados da existência.

Assim, a ansiedade neurótica poderia significar,

por exemplo, negação do medo da morte, negação

da liberdade de escolha, evitamento de assumir

responsabilidades ou conformismo com as normas

sociais impostas. Seria, portanto, uma estratégia

protectora contra ameaças relacionadas com os

dados da existência e resultaria de uma tentativa

de negar a ansiedade existencial, na busca duma

existência segura e livre de quaisquer incertezas.

Deste modo, as manifestações psicopatológicas

seriam possibilidades escolhidas, porque derivam

de escolhas inautênticas, consideradas por May

como pouco corajosas. Assim, a ansiedade existencial

não é reduzida e aparece sob a forma de ansiedade

neurótica. Seriam possibilidades de existir, isto

é, expressões da forma como o indivíduo constrói

(escolhe) o seu-mundo. Finalmente, este autor destacou

também que a psicopatologia está associada a

falta de poder pessoal, de poder para desenvolver

as suas potencialidades e para influenciar os outros.

Laing (1978) introduziu o conceito de insegurança

ontológica a propósito da experiência esquizofrénica,

na qual o indivíduo sente-se mais irreal

do que real, precariamente diferenciado do resto

do mundo, com uma identidade e autonomia vacilantes.

Ao mesmo tempo, a atomização do tempo vivido

associa-se a uma vivência de perda de continuidade

no tempo.

Yalom (1980) considerou o comportamento

perturbado como estando directamente associado

ao fracasso no confronto com os conflitos existenciais,

entendidos estes como confrontos entre o indivíduo

e os dados da existência. Ou seja, são definidas

modalidades de perturbação especificamente associadas

a fracasso no confronto com a angústia relacionada

com dados da existência específicos:

- Morte – Crença de invulnerabilidade pessoal,

comportamentos de risco compulsivos, dependência

do trabalho, comportamento narcisista,

controlo agressivo e arrogante com procura

de poder, crença na existência dum salvador/

/dependência. O comportamento neurótico

é considerado por Yalom como uma tentativa

de escapar ao medo da morte, tentativa que

estaria também presente na esquizofrenia

- Liberdade de escolha e responsabilidade –

Comportamento compulsivo, deslocamento

da responsabilidade para o outro (por exemplo,

personalidades obsessivas e paranóides) e

negação da responsabilidade mediante comportamento

de vitimização ou comportamento

regressivo e descontrolado com procura de

ganhos secundários

- Solidão – Dependência excessiva dos outros,

sexualidade compulsiva

- Sentido da vida – Envolvimento compulsivo

em actividades relacionadas com causas sociais

(“espírito de cruzada”), prestígio ou poder,

conformismo excessivo, abuso e dependência

de substâncias.

Frankl (1986, 1984) e Maddi (1970), cada um

pelo seu lado, enfatizaram que a procura do sentido

seria a motivação fundamental do indivíduo e que

a psicopatologia estaria associada à falta de

sentido para a vida que, deste modo, teria o estatuto

de frustração existencial. Quando a vida não tem

sentido torna-se vazia e a experiência é de vazio

existencial, que engloba um sentimento generalizado

de falta de sentido, vivido com inércia, aborrecimento

e apatia. A sua persistência conduz à frustração

existencial. Seria essa frustração existencial que

conduziria à neurose denominada neurose noogénica.

Para Maddi (1970), a psicopatologia apareceria

em modalidades diferentes de comportamentos

desajustados:

- Comportamento vegetativo – É o grau mais

extremo da falta de sentido, no qual o indivíduo

mostra incapacidade de acreditar no

que faz ou imagina fazer, com um vivido

406

psicológico de apatia, aborrecimento e depressão.

É o vazio sem objectivos que pode encontrar-

-se em indivíduos deprimidos e esquizofrénicos

- Comportamento niilista – Desacreditação

de tudo, vivido com desgosto, raiva e enfado,

como nas perturbações obsessivas e na paranóia

- Comportamento aventureiro – Associado a

estados de depressão e de euforia, pode envolver

comportamentos de risco para a saúde e/ou

uso de substâncias, ou até entrega a causas

sucessivas como modo de lutar contra o vazio,

como em perturbações afectivas e borderline

- Comportamento conformista – Desempenho

de papel social tradicional, com intolerância

à incerteza, em indivíduos com comportamento

tipo A, alexitímicos e obsessivos.

Kirk Schneider (1999) introduziu o conceito

de polaridade constritiva/expansiva da realidade,

que seria aplicável à experiência. Considerou a

saúde mental caracterizada pela capacidade de se

movimentar com abertura e flexibilidade ao longo

desse continuum e que a psicopatologia se caracterizaria

por uma tendência do indivíduo para se

situar nos extremos dessa polaridade. Assim, seria

possível diferenciar disfunções hiper-constritivas

(depressão, agorafobia, dependência) das hiper-

-expansivas (impulsividade, mania) e das que

oscilam de polaridade (perturbação bipolar, esquizofrenias).

Seja como for, a compreensão do significado

da psicopatologia implica contextualizá-la na existência

através de uma compreensão da subjectividade

em contexto histórico, social e cultural. Os fenómenos

psicopatológicos relacionam-se com estranheza

e afastamento do indivíduo em relação a si próprio,

com evitamento dos dados da existência (Cohn,

1997), associado a escolhas feitas em desacordo

consigo mesmo, isto é, não autênticas. Assim,

relacionam-se com o viver na dependência das

expectativas dos outros e não dos próprios. Teriam

relação com fracasso do indivíduo em relacionar-se

de forma significativa com o seu mundo interno

(fracasso no seu confronto com a autenticidade),

conhecendo-se mal e tendo dificuldade em compreender-

-se (Van Deurzen-Smith, 1996). Incapaz de aceder

ao seu mundo interno, o indivíduo perturbado teria

dificuldade também em aceder ao mundo interno

dos outros, pelo que não seriam possíveis relações

significativas. Desta impossibilidade resultam

sentimentos de vazio e de falta de sentido. O

existente com perturbação mental experimenta

frequentemente um impasse em relação a projectos

e a modos de ser: não consegue realizá-los nem

consegue abandoná-los. A psicopatologia surge

quando o projecto se desvia da intenção, quando

a realidade histórica (projecto histórico) se desvia

ou afasta do projecto existencial (escolha originária).

A história afasta-se do projecto através da vivência

de contradição (intra-pessoal e/ou interpessoal)

na sequência da qual o indivíduo escolhe afastarse

ou é afastado. Assim, a psicopatologia caracteriza-

se essencialmente por uma existência: limitada

e aprisionada, porque afastada dos seus valores e

da sua possibilidade de auto-afirmação e em que

o indivíduo não experimenta a sua existência como

uma realidade; tematizada pelo seu passado, na

medida em que o indivíduo continua a viver em

função de identidade e características que já não

são as presentes; bloqueada no seu desenvolvimento,

porque não consegue projectar-se no devir.

O modo de existir mentalmente perturbado não

interessa como categoria nosológica mas sim como

uma forma de compreender as estratégias que o

indivíduo utiliza para resolver o problema de ser.

No mundo contemporâneo, a compreensão das

múltiplas experiências psicopatológicas que podem

afectar o Homem exige a consideração simultânea

das suas condições biológicas, psicológicas, familiares,

sociais e políticas, que são produzidas culturalmente

por processos ideológicos (Moreira, 2004). Ou

seja, nos tempos que correm uma perspectiva existencial

da psicopatologia tem que acomodar os

princípios fundamentais da psicopatologia crítica,

em especial o princípio da contextualização (social

e cultural) da experiência psicopatológica, a

ênfase no bem-estar, na justiça social e na solidariedade,

a influência das desigualdades sociais,

da opressão, da exploração e da violência na

precipitação e na manutenção da psicopatologia

e, ainda, o princípio da análise política dos problemas

de saúde mental.

Assim, uma perspectiva existencial em psicopatologia

terá que recusar a pretensa “neutralidade

científica” que apenas favorece o individualismo

ancorado no modelo biomédico e nos modelos

psicológicos assentes exclusivamente na compreensão

dos processos que ocorreriam no chamado “mundo

interno”. Terá que assumir também como objectivos

contribuir para a defesa dos direitos humanos dos

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pacientes e contribuir para a luta contra as injustiças

e desigualdades sociais que induzem sofrimentos.

Sendo uma possibilidade universal, quando

uma perturbação mental é experimentada a

questão que se coloca ao existente não é como

evitá-la mas sim como será possível lidar com

ela de forma aberta, responsável e comprometida

consigo próprio. Mais do que sintomas de psicopatologia,

os problemas e as crises são desafios

do existir em relação aos quais é necessário viver

de forma mais genuína e interessada na procura

de significados. A saúde mental caracteriza-se

pela capacidade para lidar com as complexidades

da sua própria vida e das relações com os outros

e o mundo.

2. PROBLEMAS PSICOPATOLÓGICOS

CONTEMPORÂNEOS

Esta identificação de problemas psicopatológicos

contemporâneos supõe uma compreensão existencial

da subjectividade perturbada como experiência

individual contextualizada nas suas condições sociais

e históricas. Adoptar uma perspectiva existencial

da psicopatologia inspirada nas ideias de Sartre

implica estudar as relações que podem existir entre

as estruturas socio-económicas e culturais e a subjectividade,

tentando compreender a biografia individual

no seu contexto social. Ou seja, na actualidade

surgem novas formas de subjectividade perturbada

que, em certa medida, podem ser compreendidas

em função de características da sociedade pós-

-moderna, em especial a partir da ideologia individualista

presente na cultura do narcisismo e da

chamada sociedade do espectáculo. Identificam-se

três tipos de problemas (Giovanetti, 2002, 1999):

perda da unidade psicológica, perda do sentido

da vida e transformação da intimidade.

2.1. Perda da unidade psicológica

O ponto de partida é formado pela racionalização

excessiva, simultânea com um esvaziamento afectivo

da existência.

A organização tecnológica e o predomínio do

pensamento racional, no qual a racionalidade tornou-

-se num paradigma do comportamento e da relação,

conduzem facilmente a um predomínio da racionalização

sobre a espontaneidade, a afectividade

e a criatividade. A organização científico-tecnológica

com os seus discursos científicos triunfalistas,

proféticos e optimistas, o predomínio das explicações

racionais “baseadas na evidência” dos positivismos

biomédicos e outros e o predomínio da planificação

(gestão) e da coisificação do humano conduzem

naturalmente à racionalidade como paradigma e

como forma tendencialmente única de interpretar

o mundo pessoal. A crença profundamente enraizada

de que tudo teria uma explicação racional desvaloriza

completamente qualquer possibilidade de

uma compreensão baseada em significados afectivos.

Tudo isto se articula bem com modos de ser

perfeccionistas, que procuram insistentemente a

segurança e a estabilidade e lidam mal com a

incerteza e a liberdade.

Como os aspectos emocionais e afectivos da

subjectividade continuam a estar presentes, resulta

uma quebra da totalidade e da unidade psíquica

na qual emerge facilmente a dissociação pensamento/

afecto, uma subjectividade fragmentada da

qual resulta dificuldade em compreender dialecticamente

o vivido, uma vez que a própria experiência

tende a fragmentar-se, com focalização persistente

na procura das explicações racionais para perceber

os resultados do comportamento próprio e dos outros.

A experiência clínica mostra que tende a afectar

gente com formação e profissões ligadas ao tecido

empresarial e organizacional, nomeadamente economistas,

gestores e quadros técnicos superiores, em

particular quando os seus projectos existenciais

aparecem montados quase exclusivamente na

profissionalidade.

A racionalização associada ao esvaziamento

afectivo (desencantamento) resulta em descompensação

que, num primeiro momento, se pode manifestar

pela procura de sensações “fortes” (nomeadamente

em actividades radicais ou em uso de substâncias),

pelo exagero da religiosidade ou pela procura

compulsiva de distracções e divertimento (TV, reality

shows, etc.), como forma de estimulação face ao

esvaziamento afectivo do existir.

2.2. Perda do sentido da vida

A génese da falta de sentido da vida é complexa

e pode relacionar-se simultaneamente com factores

de diversa natureza, nomeadamente culturais, sociais

e psicológicos.

Do ponto de vista cultural, o predomínio do

“aqui-e-agora” que caracteriza a chamada pós-

-modernidade vista como era do vazio por Lipovetsky

408

(1986) terá uma certa influência mediante a perda

de valores que comporta. Do ponto de vista social

importa considerar as dinâmicas sociais de consumismo

e de desvinculação do indivíduo em relação ao

grupo, bem como a tendência para a perda dos

vínculos face-a-face, que as novas tecnologias de

comunicação (telemóveis, Net) também reforçam.

Resulta facilmente um esvaziamento do estar-com,

um vazio intersubjectivo. Finalmente, do ponto

de vista psicológico, salientam-se o predomínio

da ideologia individualista e a chamada cultura

do narcisismo que se associam facilmente a um

agir auto-centrado cuja finalidade é a valorização

do Eu na satisfação imediata centrada em relações

interpessoais utilitárias e que limitam a transcendência

pessoal no compromisso profundo com os

outros e consigo próprio nos projectos significativos

a longo prazo.

Na base estão uma certa desinteriorização das

vivências, enquanto desvalorização e desinteresse

pela interioridade, e a diminuição dos contactos

interpessoais directos. Predomina a exterioridade

do existir.

A experiência é de falta de sentido e de vazio

existencial, com predomínio do efémero e superficial,

com falta de interioridade e reflexão, levando à

perda da vivência de profundidade e reflexão com

banalização do amor e do compromisso em favor

da superficialidade nas relações amorosas, ritmo

de vida veloz, importância maior do “estar-a-par”

em vez de compreender, inundação tecnológica

interposta entre as pessoas (telemóvel, computador),

generalização das relações de exterioridade pouco

significativas. Tudo isso pode proporcionar diminuição

de investimento em trocas afectivas profundas e

uma auto-centração feita de enaltecimento de si

próprio no qual o ser é igual ao parecer. A falta de

interioridade das vivências associa-se facilmente

à má fé sartreana, que leva à passividade e perpetua

as dificuldades em lidar com os problemas. Acresce

no contexto socio-económico a presença de estruturas

de alienação, de violência e de opressão. A alienação

é vivida com indiferença, solidão e falta de comunicação

interpessoal. A exterioridade e a exibição

tornam-se facilmente mais importantes do que a

história e o projecto existencial como procura de

significado para a existência.

Resulta sentimento de ausência de sentido, o

vazio existencial no qual o indivíduo vive sem

direcção e sem expectativas. Como foi referido

anteriormente, pode emergir através dos comportamentos

vegetativos, niilista e aventureiro mas também no

envolvimento compulsivo em actividades, depressão,

perturbações obsessivas, perturbação de pânico,

perturbações do comportamento alimentar e/ou

abuso de substâncias. Outra possibilidade é uma

gravidez inesperada (Zapiain, 1996), que aparece

com a finalidade de preencher o vazio associado

a vividos depressivos. Finalmente, as manifestações

da falta de sentido para a vida nos idosos podem

ser (Hazan, 1994): isolamento social e indiferença;

egocentrismo; perda do desejo de viver; adesão

excessiva a pequenas rotinas e a rituais repetitivos.

A psicopatologia parece emergir da falta de

sentido, em especial naqueles indivíduos que fracassam

nos seus movimentos desesperados de exaltação

do Eu e de estetização exibicionista da existência

que lhes são constantemente solicitados pelos valores

culturais do narcisismo e da sociedade do espectáculo.

O Homem é, como se sabe, um ser em mudança

e transformação permanente, que vive uma existência

finita e caracterizada por capacidades e fragilidades

pessoais, bem como por oportunidades e limitações

criadas pelo meio. Assim, é necessário abordar

em conjunto essa situação existencial e explorar

o significado e o valor de aprender a viver de

forma mais autêntica, isto é, mais de acordo com

os seus próprios ideais, prioridades e valores. Viver

de forma mais autêntica significa ser verdadeiro

em relação a si próprio e coerente com as suas

próprias possibilidades e limitações, criando de

forma contínua e deliberadamente a sua identidade

mesmo em confronto com as incertezas do futuro.

2.3. Transformação da intimidade

Na base da transformação da intimidade podem

encontrar-se a valorização excessiva e prioritária da

procura de prazer em detrimento da procura de

afecto e uma sexualidade que é agida de forma

afectivamente pouco investida. Assim, ocorre uma

banalização da experiência amorosas, mais centradas

no relacionamento sexual do que no envolvimento

emocional e afectivo significativo. Uma sexualidade

mais desvinculada do afecto resulta em vivência de

intimidade vazia e frustrante, uma vez que não há

diálogo verdadeiro nem proximidade, o diálogo que

requer falas falantes e abertura vivencial. Resultam

em desespero, que procura ser aliviado na compulsividade

(álcool e/ou drogas), aproximando-se do

comportamento aventureiro descrito por Maddi,

como modo de lutar contra o vazio existencial.

409

2.4. Falta de poder pessoal

O aumento das desigualdades sociais e das situações

de fragilidade social, de opressão e violência deram

grande visibilidade social à vitimização individual

e facilitaram o aparecimento de comportamentos

de vitimização, que correspondem frequentemente

a uma experiência de falta de poder pessoal. Esta

experiência caracteriza-se por escassa consciência

crítica, atitudes fatalistas e de conformismo social,

com incapacidade para construir significados e

desenvolver projectos. Com frequência associa-

-se a dificuldade em tomar decisões, comportamento

pouco assertivo, expectativas baixas de

auto-eficácia, sentimentos de solidão e dificuldade

em pensar como é poderia agir de forma diferente

no futuro. Facilmente dá lugar a uma experiência

depressiva.

Importa ter em conta que a vitimização ocorre

sempre em contexto (social, cultural e económico)

e que o indivíduo que mostra comportamento de

vitimização não se considera co-responsabilizado

pelo que lhe aconteceu ou está a acontecer e faz

sistematicamente atribuições externas, pelo que

tende a não mudar de comportamento e, portanto,

tende a manter-se na dependência dos outros. Contudo,

do ponto de vista existencial, pode ser uma oportunidade

de mudança e transformação pessoal, se a

situação adversa for aproveitada para facilitar ao

indivíduo uma maior compreensão de si próprio,

o desenvolvimento duma maior consciência crítica

e a superação da dificuldade em escolher-se, responsabilizando-

se.

3. INTERVENÇÃO NA PERSPECTIVA DA

PSICOTERAPIA EXISTENCIAL

O que se pretende em psicoterapia existencial

é ajudar o indivíduo a reorganizar a existência,

mudar para melhor, facilitando-lhe a procura da

autenticidade a partir de si-mesmo. Assim, papel

do terapeuta existencial é o de facilitar ao indivíduo

o encontro consigo próprio para que possa compreender

melhor os seus valores, assunções e projectos,

mas também ajudá-lo a questionar o seu projecto

existencial e a assumi-lo de forma mais livre e

autêntica.

Utilizando o método fenomenológico, a finalidade

é compreender os significados que são construídos

pelo indivíduo nas quatro dimensões da sua existência

(física, social, psicológica e espiritual) mas de

forma a que essa análise do existente não seja

reduzida a processos psicológicos nem a um

self separado do mundo, embora valorizando os

significados que o indivíduo constrói para as suas

emoções, pensamentos, crenças, comportamentos

e relações.

A psicopatologia, se estiver presente, não poderá

ser compreendida fora do mundo. A sua compreensão

– a compreensão da psicopatologia como perturbação

mental-no-mundo (Moreira, 2004) do existente –

implica a consideração simultânea das suas condições

biológicas, históricas, psicológicas, sociais e culturais,

com atenção especial à sua qualidade existencial

de limitação, dificuldade em construir significados,

em desenvolver projectos e falta de empowerment

individual. Concordamos que as experiências psicopatológicas

estão frequentemente associadas ao

vazio existencial e à diminuição do poder pessoal,

dois aspectos que só podem ser compreendidos a

partir da análise do existente, isto é, da análise,

não do ser, mas sim do seu-mundo. A falta de

poder pessoal está associada à dificuldade em

compreender os significados, escolher-se e construir

projectos.

Os objectivos gerais da psicoterapia existencial

podem ser sistematizados da seguinte forma (Van

Deurzen-Smith, 2000, 1996):

3.1. Auto-compreensão

Pretende-se facilitar ao indivíduo uma atitude

mais autêntica em relação a si-próprio. Trata-se

de um processo gradual de auto-compreensão com

a finalidade do indivíduo vir-a-ser mais autêntico

e coerente consigo mesmo, para que possa responder

às situações com sentimento de domínio e maior

percepção de controlo pessoal. Para Cohn (1997),

trata-se de ajudar o cliente a libertar-se das consequências

perturbadoras da negação e evasão do

seu confronto com os dados da existência.

3.2. Auto-consciência

Pretende-se promover uma abertura cada vez

maior das perspectivas do indivíduo em relação

a si-próprio e ao mundo. Esta abertura, que consiste

num trabalho focalizado na relação do indivíduo

consigo mesmo, pode ser promovida através da

facilitação de uma auto-avaliação das suas crenças,

valores e aspirações que sirva para atingir maior

410

clareza na exploração das suas experiências. O

foco é a auto-consciência, enquanto consciência

de si-mesmo, em particular a auto-consciência do

tempo perdido (das possibilidades perdidas) e da

necessidade de viver agora, com maior consciência

das suas capacidades e potencialidades. O principal

objectivo é proporcionar o máximo de auto-consciência

para favorecer um aumento do potencial

de escolha (Erthal, 1999). O que é necessário é

regressar à experiência e assumir a sua liberdade

para agir, isto é, uma atitude activa face às situações

constitutivas do estar-no-mundo, que se apropria

directamente da exterioridade social e da história.

3.3. Auto-determinação

Pretende-se clarificar como agir no futuro em

novas direcções. Trata-se de facilitar a abertura a

novas possibilidades de vir-a-ser, diferentes das

desenvolvidas até aí e de acordo com o seu projecto,

em relação ao qual se facilita o confronto e questionamento.

Questionar o projecto, aproveitando a

crise que ameaça como uma oportunidade de

transformação. Pretende-se ajudar o cliente a descobrir

o seu poder de auto-criação e a aceitar a liberdade

de ser capaz de usar as suas próprias capacidades

para existir (Erthal, 1999). O foco é a auto-determinação,

enquanto poder de decidir o que lhe convém

ser e fazer, exercendo a sua liberdade de escolha.

Trata-se de facilitar a abertura à construção de novas

alternativas.

3.4. Procura de sentido

A finalidade é a de facilitar o encontro do indivíduo

com o significado da sua existência. Trata-se de

promover o confronto e a re-avaliação da compreensão

que o indivíduo tem da vida, dos problemas que

tem enfrentado e dos limites impostos pelo seu

estar-no-mundo. O foco é a procura de sentido

que permite a auto-realização, enquanto tudo o

que o indivíduo é capaz de vir-a-ser. Procurar o

significado numa lógica de acção criadora, que é

uma lógica de liberdade.

A procura de sentido é entendida procura do

sentido da existência individual, que é a compreensão

do propósito da sua própria vida. Essa procura pode

ser facilitada na entrevista por questionamentos

claramente direccionados para o sentido da existência,

tais como (Wong, 1998): Qual é que tem sido a

fonte principal de satisfação e de encorajamento

na sua vida? Quais foram os melhores (e os piores)

momentos da sua vida? De que coisas que tenha

feito se orgulha mais? O que é que já fez pelos

outros que o fez sentir-se bem? O que é que você

quer realmente da vida? O que é que falta na sua

vida? Há alguém ou alguma coisa pela qual vale a

pena viver? Qual é o propósito da sua vida? O

que é que pensa que é a sua missão na vida?

Mais especificamente, a resposta terapêutica

para a falta de sentido é o compromisso com as

possibilidades escolhidas, nomeadamente o compromisso

com o seu projecto existencial e o compromisso

com os outros de forma mais profunda e mais

autêntica. Assim, é possível considerar que a facilitação

da procura do sentido para a vida implica projecto,

compromisso e harmonia (Csikszentmihalyi, 1990):

o projecto é o projecto existencial, livremente escolhido,

que unifica as vivências passadas, presentes e

futuras; o compromisso é o compromisso com o

agir que procura realizar o projecto; a harmonia

é a resultante do projecto e do compromisso que

dá congruência aos sentimentos, pensamentos,

comportamentos e relações, uma harmonia subjectiva

que proporciona a serenidade de estar bem consigo

próprio.

Finalmente, é necessário ainda compreender

as condições sociais e históricas da subjectividade

superando a compreensão do individual (Gomez-

Muller, 2004) porque não há subjectividade fora

do mundo: a subjectividade está-no-mundo. A

subjectividade, síntese dos vividos corporais e da

relação de integração da multiplicidade de relações

intersubjectivas, é um acto (subjectivação) e não

um estado que constitui a identidade (praxis). A

praxis é o Homem que se faz fazendo-se: interiorização

do exterior/exteriorização do interior.

Assim, a perspectiva existencial da intervenção

implica compreender o sofrimento psicopatológico

do indivíduo na situação socio-histórica em que

ele vive, ama, trabalha e se relaciona com os outros.

No mundo contemporâneo, uma perspectiva existencial

realmente comprometida e progressista terá que:

- Contribuir para a identificação dos factores

pessoais, familiares, sociais e culturais associados

ao vazio existencial e à diminuição

do poder pessoal

- Identificar os determinantes psicossociais

do comportamento de procura de cuidados,

nomeadamente as dificuldades e conflitos

familiares, os abusos e a violência, a acumulação

de acontecimentos de vida, os problemas

411

laborais, a procura de estabilidade e a solidão,

entre outros

- Facilitar o desenvolvimento do empowerment

individual, de forma a que o indivíduo possa

ganhar mais e melhor controlo sobre a sua

vida, transformando a alienação, o isolamento

e a falta de poder em consciência crítica,

auto-determinação, autenticidade, responsabilidade

e compromisso

- Contribuir para a libertação individual, tomando

consciência da opressão e partilhando mais

colectivamente a sua experiência com outros

que estão também a vivê-la ou que a viveram

antes.

Isto significa que a perspectiva existencial em

psicopatologia necessita frequentemente de associar

a dimensão da psicoterapia existencial com uma

dimensão de promoção do empowerment individual

e treino de competências pessoais e sociais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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RESUMO

Após introduzir brevemente a perturbação mental

como uma possibilidade do existir, o autor apresenta

alguns problemas psicopatológicos contemporâneos

numa perspectiva existencial, nomeadamente as

experiências de perda da unidade psicológica, de vazio

existencial e de empobrecimento da intimidade. Seguidamente

procura caracterizar criticamente a intervenção

clínica na perspectiva da psicoterapia existencial.

Palavras-chave: Psicopatologia, psicoterapia existencial.

412

ABSTRACT

The author examines mental illness as a way of being

and presents the existential approach of some contemporaneous

psychopathological problems: existential

vacuum, loss of psychological unity and intimity impoverishment.

Afterwards examines the clinical existential

approach.

Key words: Psychopathology, existential psychotherapy.

413

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