Algumas vezes nos deparamos com situações inusitadas que jamais seriam esperadas por nós como fazendo parte de nossas vidas. Foi o que ocorreu comigo há alguns anos atrás, ainda iniciante como terapeuta, quando me foi indicado um cliente com uma história que muito me afligiu. Tratava-se de uma pessoa de boa aparência, inteligente, embora sem muito preparo, com problemas de relacionamento. Sua maneira de ver o mundo era hostil, de forma que lhe era muito fácil responsabilizá-lo pelas atrocidades por que passara.
Augusto era de família humilde onde existiam muitos tipos de conflito. Com dificuldades financeiras e pela súbita morte do pai, Augusto precisou, além de estudar, desenvolver algum tipo de trabalho para ajudar no sustento da família. Fazia biscates que muitas vezes lhe impediam de se dedicar aos estudos. Conseguiu cursar até a 1a série do colegial, decidindo abandoná-la e fazer concurso para sargento do exército. O salário era razoável e dava para suprir alguma? de suas necessidades. A relação com a mãe era bastante formal, absolutamente carente de contatos afetivos. Com o pai o contato tinha sido à base de submissão. Ele era agressivo e autoritário para com o filho. Sua forma de punição, a qualquer tipo de erro, costumava ser das mais dolorosas possíveis (surra com cinto, deixar de joelho no milho durante horas, etc.). Quando perdeu o pai, Augusto sentiu um certo alívio por
um lado, ainda que por outro um vazio, pois, apesar de tudo, era com o pai que Augusto tinha o mínimo de troca de afeto. No início de nosso convívio terapêutico, Augusto se mostrou alguém que queria encontrar um caminho de crescimento. Administrava sua inteligência muito bem e obtinha "insights" com relativa facilidade. Nossa relação caminhava para uma estruturação, embora sentisse - o que é normal no início de qualquer tratamento - que existiam coisas invisíveis, coisas que tornavam opacas a minha visão da imagem que Augusto passava de si. Nenhuma garota conseguira ficar com ele por mais de dois meses, ainda que, segundo ele, os momentos fossem muito agradáveis. Pesquisamos juntos essa dificuldade e sua participação nessa dissolução. Augusto atribuía à impaciência da parceira, ou às dificuldades da mulher em geral, ou mesmo ao fato de que não teria encontrado a pessoa certa. Relutava em admitir hipoteticamente sua partilha na dificuldade. Para minha surpresa, decorridos três meses de tratamento, Augusto resolveu "fazer uma confissão" (essa foi a expressão usada por ele). Contou-me que precisava falar sobre o seu passado para que eu o ajudasse a superá-lo. Tal expurgo dizia respeito a um emprego que havia tido outrora. Havia trabalhado como torturador, alguém que forçava os outros a dizer o que sabia, ou o que não sabia.
Sabemos que um terapeuta é treinado para fazer o que se denomina reduções fenomenológicas, ou seja, extrair tudo o que possa intervir nos sentimentos do cliente para que não seja imposto um centro de referência que não seja o dele. Mas quando isso não é possível, por uma dificuldade nossa, é hora de encaminhar o cliente para alguém que tenha mais condições de lidar com a situação.
Quando Augusto se revelou um torturador, eu comecei a ter problemas. Era-me muito difícil vê-lo como antes. Estava eu misturando os meus valores com os dele, e isso era imperdoável. Havia em mim um juízo de valor que estava enviesando o sucesso do tratamento. Tentei explicar com o cuidado de não fazê-lo se sentir rejeitado, mas, ao invés, perceber que a dificuldade era minha. Ele pediu que eu tentasse mais um pouco, já que vínhamos caminhando bem. Muito bem, houve a chance. Augusto
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