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PESQUISA DO VIVIDO

Uma psicologia humana passa muitas vezes por uma abordagem fenomenológica, seja no sentido mais puro de um olhar para consciência e os significados do sujeito entrevistado, seja no sentido em que esse olhar é determinado pelas indagações que habitam o pesquisador. Na verdade uma coisa necessita da outra. Esse capítulo tenta mostrar isso numa linguagem que, mesmo sendo teórica, pretende clarear os rumos da pesquisa e da prática. E quer fazer isso como numa primeira expressão apenas reflexiva.

Uma das coisas que caracteriza uma psicologia de inspira­ção fenomenológica é a importância dada ao vivido. Acredita-se que nuitas vezes ele seja melhor guia para nossas ações concretas e para nossos pensamentos do que concepções ou ideias construídas mais íu menos artificialmente (AMATUZZI, 1996). Daí a importância da pesquisa que tenha por objetivo uma aproximação do vivido, e a consequente expressão do que nele está contido como significado potencial face a alguma problemática trazida pelo pesquisador. É diante de uma indagação que o vivido se manifesta.

Mas o que é o vivido? É nossa reação interior imediata àquilo que nos acontece, antes mesmo que tenhamos refletido ou elaborado conceitos. Hesitei ao escrever "nossa reação" ao invés de "a reação da pessoa". Saí do impessoal e escrevi "nós". Nossa reação. Saí da postura objetiva e neutra, e estou evocando a experiência minha e do ^leitor, a experiência comum, nossa. Todos podemos saber de que estou falando, mesmo que isso seja de difícil definição. Reagimos por dentro àquilo que nos acontece. Isso é o vivido, a experiência ime­diata. É como nos sentimos.

Essa reação interior já é alguma coisa da ordem da consciên­cia. Não estamos nos referindo a reações externas, físicas ou fisioló­gicas, mas a reações internas. Algo que podemos sentir. Poderíamos talvez falar da face interior, ou psicológica, de nossa reação. Mas aqui quase que já existe uma tomada de posição em relação à questão do paralelismo psico-físico (DUTRA, 2000). E não é essa a intenção. Relativizemos, pois, nossas maneiras de falar. O que importa é aquilo a que estamos nos referindo, como uma experiência de cada um.

Um outro aspecto é que se trata da reação imediata. Não a rea­ção construída, nem a reação pensada. É o que eu sinto, diretamente, a forma como avalio, diretamente. Para além das mediações pensadas, para além das minhas escalas de valor. E não se trata também daquilo que eu possa pensar depois para "domesticar" a experiência, ou redu­zi-la ao familiar.

Finalmente, dissemos que é nossa reação interior àquilo que nos acontece, e não simplesmente àquilo que acontece. A diferença é justamente a conexão com nosso centro pessoal. Buber dizia que "aquilo que me acontece é palavra que me é dirigida" (BUBER, 1982, p. 44). Há coisas que nos tocam e das quais não temos a menor consciência. É um tocar meramente físico. Para que possamos falar de vivido como reação interior, é necessário um outro nível de comunicação envolvendo a subjetividade, é necessário que tenha acontecido algo que seja portador de um sentido potencial para mim (ainda que seja apenas o sentido de um espanto). Com o vivido estamos no plano do significado, e não simplesmente no plano dos eventos mecânicos, digamos assim, ou objetivos. O vivido não é a reação muscular, mas a reação psicológica, mental, espiritual, antes de qualquer elaboração posterior com raciocínios. A reação psicológica imediata. Por isso falamos também de experiência imediata, e de sentimento (ver por exemplo ROGERS e KINGET, 1975,pp.61-63).

Mas essa palavra sentimento, embora possa ser usada aqui, é perigosa. O sentimento se distingue claramente do pensamento. Uma coisa é sentir, outra coisa é pensar. Pois bem, o vivido está num plano de consciência onde o sentir e o pensar não se distinguiram ainda. E nesse sentido ele é tanto sentimento como pensamento, sem ser nenhum dos dois. É sentimento e pensamento potenciais. É a raiz tanto do sentimento como do pensamento. Sim, porque o sentimento tambem pode ser elaborado, recebendo a influência dos pensamentos e decisões. E, como tal, ele estará distante da experiência imediata, pré-reflexiva. Se denominamos o vivido de sentimento é, então, para distingui-lo do pensamento elaborado, ou da elaboração posterior que ocorre. Apenas por isso.

Vivido, experiência imediata, sentimento primeiro: a impor-tância de se retornar a isso fica mais clara, então. É como se estivés­semos deixando de lado tudo aquilo que colocamos em cima do que é primeiro, para voltarmos à pureza original, digamos assim, para permitir que essa pureza original dê vida a tudo que se segue a ela, i-orrigindo possíveis distorções, clareando a relatividade das elabo­rações. A pesquisa fenomenológica pretende voltar ao vivido, não negando as elaborações que se fazem a partir dele, mas colocando-as provisoriamente entre parênteses, para revê-las depois, à luz daquela fonte primeira. Daí as coisas podem ficar mais claras.

Mas como chegar ao vivido sobre algum tema de inves-tigação? Isso ficará mais claro se examinarmos primeiro o que acontece com ele no plano das significações. O seu percurso psico­lógico.

Ele sozinho não existe, uma vez que é sempre acompanhado de alguma significação. A função da pesquisa consiste em substituir sua significação contextual imediata, pela significação do contexto trazido pelo pesquisador, dialogicamente. Vamos construir isso passo a passo.

Dizer que o vivido é sempre acompanhado de alguma significação significa dizer que não temos acesso direto a ele. Qualquer acesso já é uma forma de significá-lo, tanto por parte do próprio sujeito que o vive, como por parte do pesquisador (ou do sujeito que reflete sobre ele). Por isso devemos dizer que o vivido "se diz" dentro de nós, ele se expressa, e assim assume um significado. E é nesse ato de se dizer que ele se constitui como vivido pleno, pois é a partir de sua inscrição mínima na consciência que ele se torna vivido propriamente, e não apenas um evento físico.

Mas essa inscrição mínima é duplamente determinada, a partir de fora. Ela já recebe a influência dos modelos de pensamento e linguagem que existem no contexto sociocultural onde o sujeito toma consistência, e recebe também a influência da história individual do sujeito tal como foi se construindo e deixando suas marcas na memória total dele. Essa dupla influência se apresenta, no entanto, como os ossos desse corpo, sendo que a carne é o próprio vivido original. Ou seja, ele é estruturado a partir dessa dupla influência. O resultado é esse corpo com o qual podemos entrar em contato. É um corpo unificado, mas composto de uma reação original, por um lado, e de uma estrutura que lhe possibilita a expressão e a forma como é conscientizado, por outro.

Esse corpo (o vivido constituído) se expressa, então, como uma forma de consciência (e é como forma de consciência que recebe a influência dos padrões culturais e da história individual). Mas ele pode se expressar também como uma forma de ação no meio, consti­tuindo-se como uma resposta (sujeita também àquela dupla influên­cia). A pessoa manifesta sua reação imediata pela ação através da qual responde a ela. A ação é uma forma de consciência também, de manifestação do vivido. Principalmente quando ela está assim tão próxima da fonte que é a reação imediata.

A dificuldade de falar disso é grande porque o vivido pleno supõe sua manifestação na consciência (através de uma inscrição ainda que seja mínima), e essa manifestação pode se dar diretamente através de uma ação (que seria então como uma forma de pensa­mento).

Uma representação pode nos ajudar a compreender essa primeira expressão do vivido, ou essa primeira aparição dele no percurso de se manifestar. Podemos imaginar um triângulo de lados iguais, de cabeça para baixo. No ângulo inferior desse triângulo temos o sentimento primeiro, a reação interior imediata, o vivido puro, digamos assim. Mas isso tem uma inscrição na consciência. Essa inscrição pode se dar como a linguagem interior, ainda primi­tiva, de um dar-se conta, de uma interpretação fundadora (como diz LADRIERE, 1975), de um dizer original ou de um pensamento primeiro. Este seria o ângulo superior esquerdo de nosso triângulo. O ângulo superior direito (que está também acima da linha da simbo-lização que corta o triângulo horizontalmente no meio) é o da ação como também expressão primeira do vivido. Trata-se de uma ação significativa, de um fazer algo, ou de um dizer, interferindo no meio como uma resposta ao que nos acontece, mas ao mesmo tempo como manifestação do que se passa conosco. Reparemos, no entanto, que a área abrangida por qualquer um dos 3 ângulos do triângulo é a mes­ma. O ângulo seria apenas o ponto de vista a partir do qual olhamos o triângulo. Tudo isso é o vivido pleno em seu momento primeiro de manifestação. É preciso, então, distinguirmos (para compreender), mas sem separar (como fatos ou entidades independentes), o puro vivido ou reação imediata, que não existe por si mas é apenas um dos

ângulos do triângulo, e o vivido pleno em sua manifestação primeira, que é o triângulo inteiro. Essa complexa realidade psicológica

costuma ser expressa por tríades de palavras: sentimento-pensa-

mento-ação, experiência-percepção-comunicação, vivido-simboli-

zado-manifesto.

É preciso, no entanto, tornar nossa imagem mais complexa

ainda. Como realidade dinâmica, esse triângulo (ou esse vivido

pleno) nasce de um núcleo, o "centro" ou "coração" da pessoa, o qual é, na verdade, uma relação. O "coração" humano é abertura. É por isso que dizemos que algo nos acontece. Existe um outro. O passo primeiro, onde se constitui a subjetividade, é um acolhimento. Pois bem, nosso triângulo, vindo desse centro, se expande para fora, formando uma pirâmide de 3 lados. O pensamento (percepção, simbolização) se desdobra em reflexão ou elaboração posterior, constituindo como que um pensamento segundo. A ação primeira (comunicação, manifestação) vai também se sofisticando e se elaborando em ações planejadas e complexas. E cada uma dessas coisas gera também novas vivências, desdobrando o puro vivido primeiro, a começar pela vivência de pensar e a vivência de agir ou

interferir no meio. Isso é necessário e biologicamente adaptativo para a espécie humana. Mas tem um risco: distanciar-nos do centro a ponto de perder o contato com ele, e conseqüentemente perder a relação básica. Daí então a expansão do triângulo (a pirâmide) se transforma em desvario, e joga a pessoa no isolamento por mais que ela aja e interfira no meio. Uma pirâmide "furada" em seu topo, sem o vértice e portanto sem eixo. Então, uma pessoa inteligente planeja mil ações e faz sutis análises, mas não se satisfaz em seu coração. Ela perdeu o contato com seu centro, com sua relação básica. Mas voltemos ao nosso propósito. Agora que descrevemosalgo do percurso do vivido ou experiência imediata, o que podemos dizer sobre o acesso a ele no intento de uma pesquisa fenomenológica?

Em primeiro lugar é preciso dizer que uma pesquisa é uma atividade que se situa também em nossa consciência (em nossa pirâmide). É um momento de consciência que pode ser comparado a um corte perpendicular ao eixo da pirâmide, formando, em seu plano, um triângulo. Esse triângulo é uma abstração, pois ele existe na verdade dentro do dinamismo da pirâmide que se expande a partir de uma relação básica. De qualquer forma essa imagem nos ajuda a ver que a pesquisa tem um pólo de raciocínio, reflexão,pensamento; tem também, num outro pólo, um sentimento primeiro que decorre do contato com o dado; e, num terceiro, uma ação que é todo seu proce­dimento. E isso sem falar nas ações decorrentes, mudanças na forma de estar no mundo que são consequências do conhecimento gerado, e os sentimentos e pensamentos que acompanham e se seguem a isso. No pólo pensamento, uma pesquisa é uma reflexão, um pensamento segundo. É bem verdade que esse pensamento segundo torna-se primeiro no âmbito interno da pesquisa (e será uma boa pesquisa quando estiver organicamente interligado com os outros pólos: o sentimento primeiro diante do dado, e o fazer-dizer primeiro que manifesta o dado). Mas o que importa lembrar aqui, agora, é que ela é um pensamento segundo, que se desdobrou como uma reflexão, pondo-se deliberadamente e sistematicamente a olhar para os pensamentos primeiros, ou ações, que expressam o vivido origina­riamente. A pesquisa está mais distante do centro gerador, embora só tenha sentido enquanto estiver sob o influxo de sua energia.

Podemos dizer, então, que o acesso ao vivido, na pesquisa fenomenológica, se dá através dos pensamentos e ações que o mani­festam da forma mais direta possível. "Lemos o vivido" entrando em contato com suas manifestações. Depoimento é o nome que se convencionou dar para essas manifestações quando são tomadas exatamente como apoio empírico para pesquisas. Obviamente existem formas mais adequadas de depoimento para cada pesquisa. Mas em princípio qualquer forma de expressão humana pode se constituir em depoimento. Pois o que importa é a luz sob a qual lemos essa expressão. Deve ser justamente uma luz que atravessa a materia­lidade do depoimento, e embarcando em sua intencionalidade, vai em direção ao vivido puro (ou ao sentimento primeiro que se faz pre­sente) buscando expressá-lo em um outro pensamento que faça sentido no contexto da problemática trazida pelo pesquisador.

Antes de comentarmos essa luz (e aquilo que se torna claro com ela), no entanto, é preciso que olhemos um pouco mais para o depoimento. Ele pode ser qualquer expressão humana: uma dança, Um desenho, uma obra arte etc. Mas frequentemente ele é um relato verbal, especificamente colhido para aquela pesquisa, e portanto focalizado na experiência imediata que é o objeto da investigação. Por exemplo, se quero pesquisar o autoperdão (como tema), solicito às pessoas que considerem sua experiência sobre isso, e me falem dela. Se quero pesquisar o vivido pelas pessoas em um grupo intensi­vo, peço a elas que me contem isso, estando o mais próximo possível do evento. Ou seja, o depoimento não é sempre a manifestação direta e imediata do vivido em questão. Às vezes o sujeito precisa recorrer à sua memória. O que significa isso? Significa que na leitura que fizer­mos desse depoimento devemos levar em conta toda a elaboração que pode ter sido acrescentada pela memória. Mas a base para dizermos que um depoimento desses é ainda expressão do vivido, embora indireta, é que o fluxo da consciência no tempo não se dá de forma entrecortada e justaposta. Há uma continuidade. Essa é justamente a função da memória (mesmo se precisarmos levar em conta suas ela­borações). Os significados vividos dão continuidade à experiência imediata (e se constituem, eles também, em desdobramentos do vivido). Justifica-se então que se colham depoimentos baseados na memória.

Podemos voltar agora para aquela luz. A pesquisa é uma ativi­dade de pensamento segundo, de reflexão, que se volta para uma expressão do vivido, o depoimento. Como vimos, essa expressão é determinada, como de fora, pêlos padrões linguísticos e culturais, por um lado, e pela história pessoal do sujeito, por outro. Quando o pes­quisador busca no depoimento aqueles padrões culturais que lhe dão a estrutura (querendo encontrar o coletivo manifestando-se no parti­cular), ou quando busca os elementos (vividos) de história individual que se escondem por trás da dinâmica do depoimento, ele não está ainda fazendo uma pesquisa propriamente fenomenológica. Esta ocorre quando ele pesquisador ou pessoa que reflete, guiado pela indagação que o mobiliza, atravessa o depoimento, por assim dizer, e parte em busca do vivido ali contido, sem se desviar para a busca dos padrões coletivos, ou elementos da história escondida. Mas como esse vivido não tem consistência sem uma estrutura ou contexto de significados, o pesquisador procura dizer inicialmente este significa­do para o sujeito, tal como ele se mostra no depoimento; e depois, por uma espécie de trabalho de abstração conceituai, vai se desprendendo do contexto concreto do sujeito, para expressar seu significado mais geral. Esse significado mais geral é o que aparece no contexto mais amplo da existência humana, naquele aspecto que está sendo proble-matizado pelo pesquisador, a partir de seu contexto. A luz sob a qual se lê o depoimento é, então, uma luz que permite atravessar a materialidade empírica do próprio depoimento, chegar ao vivido que ele expressa, e depois, abstraindo-se do contexto concreto deste sujeito, buscar os significados gerais em relação à existência humana problematizada pelo pesquisador. Mas esses significados gerais, assim construídos pelo pesquisador, devem dar conta do vivido concreto dos sujeitos, ou seja, devem ser suficientes para dizer e clarear esse vivido de um ponto de vista mais abrangente (e capaz de incluir outros possíveis sujeitos nessa compreensão).

Nada impede que esse ponto de vista mais abrangente possa incluir uma consideração do coletivo (em pesquisas temáticas) ou da história individual (em estudos de caso). Mas na pesquisa propria­mente fenomenológica essas considerações, quando for o caso de elas ocorrerem (devido ao tipo de delimitação do objeto e de alcance da pesquisa), serão apenas instrumentais ou intermediárias, e não finais.

Onde termina, então, a pesquisa do vivido? Com que tipo de afirmação ela se encerra? Não é com a afirmação de um faio, mas com a afirmação de uma possibilidade de compreensão (ou um conceito} que se estende para além dos sujeitos estudados naquela amostra. E assim que entendo o que Husserl chamava de essência. A pesquisa fenomenológica, em psicologia científica, descreve uma essência, a partir de depoimentos concretos de pessoas falando de suas expe­riências (ou escrevendo ou manifestando de qualquer forma que seja). O que ocorre é que tal descrição, se o objeto foi bem escolhido (ou se o recorte da existência foi bem selecionado), deve possibilitar uma visão mais clara do assunto, e conseqüentemente, um posicio­namento mais efetivo na ação.

Essa visão mais clara do assunto é o que o pesquisador busca, a partir de uma questão que está tendo significado para ele. A partir daí ele procura interlocutores vivos (ou memórias documentadas) com quem possa dialogar em torno da experiência vivida, e assim produzir suas respostas. E quando o interlocutor assume a mesma intenção de pesquisa, ele sai também beneficiado por ela. Ele sai compreen­dendo-se melhor (e capaz de ações mais efetivas). Por isso, dentro da luz fenomenológica, não há diferenças essenciais entre pesquisa e atendimento psicológico ou psicoterapia. A aproximação do vivido desencadeia mudanças. É como uma volta à fonte, "às coisas mesmas".

atendimento psicoterápico

Este capítulo retoma anotações feitas para um curso sobre
esse tema na Universidade Estadual de Maringá, em abril de 1999, logo depois publicado na revista Psicologia em Estudo, da mesma Universidade, em edição especial, 4(1), pp. 67-81, com o titulo "Abordagem fenomenológica no atendimento psicoterápico". A reflexão aqui apresentada baseia-se numa compreensão da fala e da escuta. Toda fala efetiva e plena dá vida social a um sentimento ou a uma intenção anteriormente vivida de forma ainda vaga. Fazendo isso permite a manifestação de um aspecto novo da realidade vivida pela pessoa e mobiliza sua ação. O pensamento que ela transporta inclui emoção. O atendimento psicoterápico caminha em direção a falas que cumpram essa função. Isso se faz pela escuta aberta de um terapeuta comprometido como pessoa nessa relação. Daí resulta um verdadeiro diálogo e é ele que será, na verdade, terapêutico. Foram feitas pequenas modificações no texto no sentido de complementar referências bibliográficas.

A PALAVRA FOI FEITA PARA CALAR

A base dessas considerações é uma concepção do processo de significar, inspirada na fenomenologia. O atendimento psicote­rápico é uma ajuda ao processo de significar que de alguma forma ficou bloqueado, e não está mais conseguindo seguir sozinho. Quando a pessoa vê diferente, ela se transforma e passa a estar no mundo de forma diferente.

Duas frases de Clarice Lispector ilustram bem essa concepção do processo de significar:

Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, podia-se com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao mordera isca, incorporou-a. O que salva então é ler distraidamente (LISPECTOR, 1985, p. 41).

O que é que a palavra pesca? A não-palavra. O que é uma coisa e o que é outra? A sequência do texto nos faz aprofundar na compa­ração: quando essa não-palavra morde a isca... Às vezes a não-palavra não morde a isca. Não é sempre que a palavra realmente diz alguma coisa. Às vezes ela é vazia, oca de realidade. Existem palavras e palavras. Nem sempre a palavra pesca a não-palavra. Quando consegue, algo se disse, ou algo se escreveu. Quando consegue, a palavra está sendo plenamente palavra, cheia de sentido, cheia de vida, cheia de realidade. Um escritor sabe bem quando ele realmente escreveu alguma coisa, e quando ele simplesmente colocou sinais gráficos sobre o papel. E a diferença entre a palavra efetivamente expressiva e a palavra malograda. A psicoterapia é a busca de se passar dos discursos vazios aos discursos transforma­dores. Não tanto transformadores dos outros, mas transformadores daquele mesmo que os pronuncia. Todo esforço do terapeuta é um esforço de ser um interlocutor que favoreça a essa passagem. A psicoterapia é uma pescaria das não-palavras que importam para a pessoa. E uma pescaria com as palavras de que no momento dispo­mos. O processo segue com palavras-iscas, de uma não-palavra a outra não-palavra, até que se chegue a um centro a partir do qual tudo fica diferente.

Numa outra frase Clarice diz mais:

Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irre-produzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador (LISPECTOR, 1984, p.191).

Escrever é tentar entender. Procurar entender é procurar repro­duzir o que não pode ser plenamente reproduzido. É colocar num quadro o pôr-do-sol até que possamos entender o que é o próprio pôr-do-sol. Escrever é sentir até o fim aquilo mesmo que já sentimos. É para poder sentir tudo que eu digo, falo, pinto um quadro, faço uma (lúsica, e também - por que não? - faço uma pesquisa ou me dedico à ciência. Se não o fizer o sentimento permaneceria vago, sufocador. Se não expressar de algum modo, o impacto da realidade fica parado atro de mim, me sufocando e me impedindo de continuar a viver.

Enquanto não for dito ou atualizado na plenitude de um dizer ou de uma presentificação, um sentimento permanece vago e sufo­cador. A partir do momento em que ele é dito, algo se transforma, se libera. O próprio sentimento deixa de ser vago e sufocador. E dá lugar a outros sentimentos.

Cecília Meirelles também, em um de seus poemas, faz uma pessoa lamentar que outra, a amada, não tivesse percebido o que suas palavras escondiam, e que, no entanto, segundo a amante, é forte e intenso, talvez não capturável pelas palavras, mas certamente visível para além delas.

Nunca eu tivera querido / dizer palavra tão louca: / bateu-me o vento na boca, / e depois no teu ouvido. // Levou somente a palavra, / deixou ficar o sentido. // O sentido está guardado / no rosto com que te miro, / neste perdido suspiro / que te segue alucinado, / no meu sorriso suspenso / como um beijo malogrado. // Nunca ninguém viu ninguém / que o amor pusesse tão triste. / Essa tristeza não viste, / e eu sei que ela se vê bem... / Só se aquele vento / fechou teus olhos f também... (MEIRELES, Poesia Completa, 1994, p.118).

A palavra e o sentido. O dito e o vivido. O corpo e a alma, diria Merleau-Ponty. A não-palavra de Clarice seria o sentido de Cecília. A palavra conduz o sentido, vive pelo sentido. Mas este não está preso na palavra como num cárcere. Ele voa solto no olhar, no rosto, no suspiro, na tristeza bem visíveis. Mas... só se aquele vento fechou teus olhos também. A palavra conduz o sentido, mas pode nos fechar os olhos para o sentido. Como o vento.

A palavra foi feita para calar.

Um outro poeta, este argentino, Alberto Juarroz, diz que a função da palavra é maior do que simplesmente designar as coisas. Ela cria uma presença.

El oficio de Ia palabra, / más alia de Ia pequena miséria / y Ia
pequena ternura de designar esto o aquello, / es un acto de amor:
crear presencia (JUARROZ, 1980, p. 27). ;

E ele comenta isso dizendo:

La palabra es el hombre. Si esto es asf, Ia poesia seria et modo más amplio, el modo más comprensible y creo que abarca dor... Abarcador de quê? La respuesta cómoda seria: de Io real. Pêro aqui hay otra cosa que a veces descuidamos y es que Ia palabra crea . realidad. Entonces: no solo abarcador sino también enriquecedor, ampliador de Io real (JUARROZ, 1980, p. 30).

E eu comentaria Juarroz dizendo que a palavra captura a realidade, nos põe em contato com ela, mas ao mesmo tempo, fazendo isso, ela amplia o real, ela o torna visível e o modifica. Aí então eu compreendo, eu vejo. Mas o que vejo?

Muitas vezes dizemos: "descobri um mundo novo", mesmo que nada tenha mudado objetivamente. A realidade parece trans­figurada. Ë a palavra, ou entendimento expresso por ela, que cria esses mundos. Uma experiência nova, a partir de um novo ângulo de visão: uma nova realidade.

A palavra foi feita para calar.

Retomemos isso. Á palavra cria. Cria presença. Enriquece o real. Isso nos remete para a história das concepções sobre a palavra. Resumidamente, houve 3 fases.

Primeira fase. Na Grécia antiga, assim como na Bíblia, aliás, a palavra era vista como uma coisa. Uma coisa que eu posso possuir, e que interfere com aquela outra coisa que está lá fora. Por isso o que eu digo afeta a realidade. É como se eu possuísse a alma das coisas e tivesse domínio sobre elas. Isso foi visto depois como pensamento mágico. A crença infantil e ingênua de que meu pensamento tem poder sobre a realidade. Mas isso é na verdade uma caricatura posterior do pensamento antigo. Vimos com os poetas como o pensamento que se expressa tem o poder de transformar a realidade. Foi apenas o modo de conceber isso que estava talvez pouco expli­cado. Mas por causa disso começou uma ideia diferente.

Segunda fase. Na Grécia mesmo começou-se a fazer uma separação entre a natureza (fysis, a coisa em si) e a palavra (logos, aquilo que expressa a coisa natural). Mundo é diferente de Palavra. Heráclito foi uma espécie de transição. Para ele, falar (legein, mesma raiz que logos, a razão da coisa) não era ainda uma designação posterior e externa do objeto já sabido, mas era justamente o ato de desvendar o ser da coisa, seu sentido. A palavra (logos, razão) é justa­mente o sentido desvendado. Mas para Platão e Aristóteles essa sepa­ração foi feita, e a palavra passou a ser vista como mero rótulo externo do conceito. A linguagem deixou de ser um modo de se lidar com as coisas, para ser apenas o sistema convencional de sinais construído para designar, conteúdos já pensados, sinais esses que têm a finali­dade de facilitar a comunicação na sociedade. A palavra foi então entendida como se referindo ao conceito e não mais à coisa. E o conceito foi entendido como uma maneira de se apropriar da essência. Mas esta era eterna, para Platão, por exemplo. O modelo perfeito das coisas imperfeitas. Passou a haver então, no entendimento das pessoas, uma oposição entre o pensamento puro e a linguagem. O pensamento (noein = pensar) visa essências eternas e imutáveis. A posse delas por nós é o conceito (= nous, mesma raiz que pensar). Pensar passou a ser entendido como um abrir-se para as essências eternas. E a linguagem (legein = falar) ficou sendo algo que pertence ao mundo passageiro e transitório da comunicação. O falar não desvenda o sentido; é o pensamento que faz isso, mas separando-se da coisa concreta. Essa concepção (segundo CORETH 1969-1973, pp. 26-34) irá prevalecer até o séculol 8/19.

Aí se inicia uma mudança. Terceira fase. Humboldt, em 1835 (citado por Coreth), irá afirmar: "as línguas não são propriamente meios de apresentar a verdade já conhecida, mas antes instrumen­tos para descobrir o ainda desconhecido". Para Heidegger, já em nosso séc. 20, o entendimento deve ser compreendido como uma abertura para o Ser que se revela. Ora, isso é a linguagem: a capaci­dade básica do ser humano de se abrir para o Ser das coisas. Por isso ele dirá: "o homem habita na linguagem"; e não: a linguagem no homem. Para Merleau-Ponty o que existe atrás da palavra não é o pensamento. Este está na palavra. O que existe por trás é a intenção de significar, ou seja, a mobilização para falar, o desejo. E o último Wittgenstein dirá que o jogo de linguagem próprio às ciências naturais (com a verificabilidade externa pêlos fatos) não é o único possível: existem outros jogos de linguagem (o da arte, o da ética, o da religião etc.). Se o jogo das ciências exclui como verdade tudo que não for verificado, isso não ocorre nos outros jogos, pois eles representam caminhos diferentes. Nessa 3a fase, então, retomam-se as verdades da primeira fase.

Juarroz, o nosso poeta argentino, escreve:

Utilizo el término pensar para significar Ia capacidad dei

hombre de interpretar, de traduciren palabras Ia realidad (grifo meu),

no como sistema lógico o racional, sino como persecución, como

posibilidad de infinito desvelo en pôs de encontrar un sentido a Ia

realidad. Y entiendo por sentido no una fórmula, ni una explicación,

sino simplemente el que Ias cosas son así porque deben ser así. O

sea que el pensar es para mi Ia apertura humana, creadora, que

consiste en el reconocimiento de Ia realidad que no puede darse sin

que ai mismo tiempo yo Ia este creando (JUARROZ, 1980, p. 40).



E ele diz também:

Esa capacidad dei hombre de crear Ia realidad en base a su interpretación por médio de símbolos es Io que Ilamo pensar. Pêro todo eso ai mismo tiempo está cargado de un infinito peso emotivo. Toda palavra tiene una dimensión emotiva... El hecho de pensar y de expressarse es infinitamente emotivo: no hay pensamiento sin emoción. En ese sentido entiendo pensar (Juarroz, 1980, p. 41).

E poderíamos resumir dizendo que não há palavra viva que seja sem emoção, pois ela interfere com a realidade, cria um mundo novo, mais do que simplesmente retrata a realidade. Se ficarmos na mera palavra, então estaremos matando sua vida. Adélia Prado tem um poema que se chama "Antes do nome":

Não me importa a palavra , esta corriqueira. / Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros onde .nasce o "de", o "aliás", o "o", o "porém" e o "que", esta incom­preensível muleta que me apoia. / Quem entender a linguagem entende Deus cujo Filho é Verbo. Morre quem entender. /A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. / Em momentos de graça, infreqüentíssimos, se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Puro susto e terror (PRADO 1991, p. 22).

A palavra foi inventada para ser calada, pois através dela eu entendo e dou sentido ao esplêndido caos, aos sítios escuros, à coisa mais grave, surda-muda. Quando ela pode ser, com plenitude, aquilo que tem a vocação de ser, será como um peixe vivo na mão, puro susto e terror. A tarefa do terapeuta é favorecer à palavra que seja aquilo que nasceu para ser: um momento fugaz que nos abre os olhos para a realidade, e muda tudo.

escutar É abrir-se para o mundo,

E RESPONDER

Rogers, em uma palestra originalmente proferida em 1964, diz em um trecho muito bonito e que comentei em um artigo meu (AMATUZZI, 1990):

O primeiro sentimento básico que gostaria de partilhar com vocês é a minha alegria quando consigo realmente ouvir alguém. Acho que esta característica talvez seja algo que me é inerente e já

existia desde os tempos da escola primária. Por exemplo, lembro-me

quando uma criança fazia uma pergunta e a professora dava uma : ótima resposta, porém a uma pergunta inteiramente diferente. 'Nessas circunstâncias eu era dominado por um sentimento

intenso de dor e angústia. Como reação, eu tinha vontade de dizer: Mas você não a ouviu! Sentia uma espécie de desespero infantil • diante da falta de comunicação que era (e é) tão comum (ROGERS,

1983, pp. 4-5).

Ouvir realmente. Nós podemos ouvir, porque nosso aparelho auditivo está em ordem, mas não escutar, ou não ouvir realmente, quando não atravessamos os sons e não vamos até a alma da pessoa que nos fala, ou até seu coração. Ficamos nas palavras-vento, como aquele homem do poema de Cecília Meireles. Ele não entendeu nada. O vento fechou seus olhos. O que houve com a professora de Rogers? Um mero equívoco de comunicação como se ela tivesse confundido as palavras? Certamente não. Ela entendeu corretamente todas as palavras. Mas não ouviu a pessoa. Ouviu o significado, não ouviu o sentido.

Merleau-Ponty já havia dito algo semelhante. Dizia ele que para ouvir realmente (como diria Rogers) é necessário:

reencontrar sob as linguagens empíricas, acompanhamento exte-
; rior ou roupagem contingente de todo pensamento, a palavra viva t., que é sua efetuação, onde o sentido se formula pela primeira vez, se ' funda assim, e se torna disponível para operações ulteriores íi: (MERLEAU-PONTY, 1972, p. 227).

A linguagem empírica, a fala como som mensurável, é apenas o acompanhamento exterior do pensamento. A fala como palavra viva, esta é a própria efetuação do pensamento. É nela que o sentido se formula pela primeira vez, e se constitui tornando-se então dispo­nível para outros atos de viver. Quando aquilo que dizemos não é realmente ouvido, é como se não tivesse sido plenamente dito. É

como se a fala tivesse ficado entalada no fundo de nossa garganta. E o

viver não pode se desenrolar.

Voltemos à professora de Rogers. O que será que aconteceu com a criança que não teve sua pergunta respondida? Ela poderá

voltar a insistir algumas vezes, ou poderá desistir. E se desistir acabará por esquecer sua pergunta verdadeira, e, pior ainda, acabará por substituí-la pela pergunta que a professora diz ter ouvido, e pensará que esta sim foi a pergunta correta. Paulo Freire diria que a professora foi então a "opressora" que fez o menino se distanciar de sua verdadeira palavra.

Separarmos o mero significado do significado pleno nos ajuda a compreender o ouvir. O mero significado fica no nível das palavras, enquanto o significado pleno se prende a toda presença significante da pessoa. Receber o significado pleno, e não apenas o mero significado, é ouvir realmente a pessoa. A resposta que brota deste ouvir bem pode ser chamada de interpretação simbólica porque reúne o que eventualmente estava separado.

O texto de Rogers continua assim:

Creio que sei porque me é gratificante ouvir alguém. Quando consigo realmente ouvir alguém, isso me coloca em contato com ele, isso enriquece minha vida (ROGERS, 1983, p. 5).

Ouvir realmente é igual a entrar em contato, que é igual a enriquecer minha vida ou deixar-se tocar. Voltaremos a isso mais tarde.

No prosseguimento dessa fenomenologia do ouvir e do responder, peçamos agora ajuda a Paul Ricoeur. Ele vai nos falar dos níveis de distanciamento que o discurso opera em relação o real. Entendamos bem isso. Falar significa dar um sentido às nossas experiências e portanto nos aproxima delas, permitindo-nos lidar construtivamente e criativamente com elas. Tira-nos da condição natural e nos alça à condição propriamente humana. Simbolizamos o real. Podemos discutir o real, e assim transformar nossa relação com ele. Mas ao mesmo tempo que o falar faz isso, ele também nos distancia do real. Para olharmos o que se passa, afastamo-nos um pouco. O que quer dizer tudo isso? Aproximação e afastamento são dois aspectos de uma relação diferente com o real, que a capacidade de falar nos permite. É nessa relação diferente que aparece o signi­ficado, o sentido. E então o que era simplesmente real passa a ser mundo. Mundo organizado e com sentido.

O que faz o psicoterapeuta? Ele nos ajuda a perceber como organizamos nosso mundo, e como nossos problemas se prendem à forma como fazemos isso. Se eu, como pessoa em processo terapêu­tico, puder entender isso, então terei condições de ser diferente.

Mas vamos ver, com Ricoeur (1977), como é que vai se manifestando um mundo com sentido, para além do simples real da relação imediata, quando entramos no universo da linguagem.

O primeiro distanciamento que a linguagem opera em relação ao real é o distanciamento da significação. Quando falo significo, construo signos, e assim me afasto, olho um pouco mais de longe, analiso. Pela mediação dos signos me afasto da imediaticidade da relação, digamos, animal. Mas com o evento da fala, resintetizo a realidade: eu a re-encontro como designada por mim. Aqui temos o discurso simplesmente como fala. Ouvir, aqui, é entrar em contato com o que a pessoa diz. E se sou da mesma comunidade linguística isso ocorre sem maiores problemas porque também uso os mesmos tipos de signos com os quais analisamos a realidade. Falo a mesma língua e entendo o que a pessoa está dizendo.

Mas a fala opera um segundo distanciamento. É que quando falamos arrumamos o que dizemos de acordo com um estilo próprio. Usamos expressões e construções que gostamos mais. Usamos um estilo, um género. Isso nos põe um pouco mais distantes do real imediato. É o distanciamento operado pela composição, a que

corresponde discurso como obra. Como obra literária. Se levarmos em conta isso, então o ouvir verdadeiro tem que levar em conta o contexto da relação e o estilo próprio da pessoa. Ouvir então não será simplesmente entrar em contato com o que a pessoa diz, mas entrar em contato com o que ela quer dizer através de todo esse modo próprio de dizer nesse momento e nessa situação. E isso pode não ser igual ao mero significado das palavras. Quantas vezes em brigas ouvimos o outro dizer: mas você disse isso! E não nos sentimos compreendidos. O que acontece? A pessoa joga na cara da gente as palavras e não o sentido. O verdadeiro ouvir vai além do significado imediato das palavras.

Ricouer fala ainda de um terceiro nível de distanciamento que para ele é o que ocorre quando escrevemos. Ao escrevermos alguma coisa ou gravarmos de qualquer forma o momento fugaz de uma fala, nós construímos um texto que poderá ser usado por outras pessoas de forma mais ou menos independente das intenções imediatas de seu autor. O significado de um texto não se prende mais ao que seu autor tinha consciência de ter pretendido. O texto escapa à individualidade

do autor. Este muitas vezes se surpreende com tudo que disse e não sabia. Esse é o distanciamento operado pela escrita, ou qualquer forma de fixar o que foi dito. A ele corresponde o discurso como texto. Existe um "mundo do texto". E mesmo quando falamos, aquilo que dizemos tem essa dimensão de texto que remete a um mundo talvez insuspeitado pelo autor. Quem sabe sejam essas as dimensões coletivas do que dizemos. Mas mesmo coletivas, são eminentemente pessoais, pois se enraízam em nós. Aqui o ouvir tem que ir mais longe, então. Ouvir realmente, aqui, significa entrar em contato com o mundo da pessoa. Com aquele espaço mental ou campo semântico onde ela habita mesmo sem conhecer tudo que há ali. E nós podemos entrar em contato com esse mundo mesmo sem termos que dizê-lo de forma organizada. Ele se constitui de tudo que é recebido pela pessoa, mas também de tudo que foi construído por sua história pessoal, pela história de suas emoções, sentimentos, reações, e pelo seu momento presente em que nos fala. Não "saberemos" de forma representada e discriminada tudo isso, mas podemos entrar em contato. É como entrarmos na casa de uma pessoa. Em sua moradia pessoal. Em seu modo de ver, organizar o mundo, estar nele, agir. Ela está neste mundo, e podemos, ouvindo, entrar nele como um todo. O mundo do outro tem coisas em comum com o nosso mundo, e tem coisas que lhe são próprias. Mas justamente por isso, ouvir com essa profundidade nos obriga a questionarmos nosso próprio mundo pela aproximação do mundo do outro.

Isso exatamente é o quarto nível de distanciamento operado pela fala. A fala, deixando de ser só do outro, nos afeta e questiona. Obriga a que tomemos uma posição. Permitindo que a presença total do outro me atinja como um projétil, ouço-me a mim mesmo recriado por esse encontro. E o distanciamento operado pela comunicação ou pelo ato direcionado de fala, a que corresponde o discurso como desafio. A fala do outro o distanciou de sua realidade imediata e, através do seu mundo comunicado, o colocou em contato comigo ouvinte, desafiando-me. Ouvir realmente agora significa ouvir-se a si mesmo recriado nesse encontro com o outro. E o paradoxo aqui é que ouvir-se a si mesmo é ainda ouvir ao outro que se comunica comigo. Se eu não me ouço no que ele diz, ele não foi ainda plenamente ouvido.

Estamos aqui no limiar da resposta e temos que recorrer a Buber. A fenomenologia do ouvir se expande em fenomenologia do diálogo. O que acontece então quando o ouvir chegou a esse nível de profundidade? O passo seguinte pode ser expresso assim: permitindo a interpelação do outro, sinto a necessidade da res­posta. Seu discurso já não está nele. Está agora em mim. O encontro humano está eminentemente presente em nossa relação com o mundo. O que ocorre em mim que estou ouvindo é uma mobilização. Tanto em minha vida pessoal, como aqui diante da pessoa como interlocutor.

Para Buber a palavra verdadeira é a palavra dirigida, e é por isso que recebê-la afeta a pessoa. Se como ouvinte não fui afetado, então não ouvi realmente. Mas não apenas as pessoas nos falam, também os eventos do mundo nos falam.

Aquilo que me acontece é palavra que me é dirigida. Enquanto coisas que me acontecem, os eventos do mundo são palavras que me são dirigidas. Somente quando os esterilizo, eliminando neles o germe da palavra dirigida, é que posso compreender aquilo que me acontece como uma parte dos eventos do mundo que não me dizem respeito (BUBER, 1982, p. 44).

A outra pessoa é uma presença que me fala, uma presença a mim dirigida. É só quando elimino esse fator de presença dirigida, e portanto de algo que me toca, que eu posso olhar um acontecimento de forma neutra, como algo que não me diz respeito. Essa objetivi-dade só é possível graças à supressão mais ou menos artificial da rela­ção mobilizadora. Mas o preço que se paga é não tocarmos o centro dinâmico da pessoa. Em psicoterapia, se quisermos tocar o centro dinâmico da pessoa, é portanto necessário que nos deixemos tocar.

Tomar conhecimento íntimo de um homem significa então, principalmente, perceber sua totalidadade enquanto pessoa determinada pelo espírito, perceber o centro dinâmico que imprime o perceptível signo de unicidade a toda sua manifestação, ação e atitude. Mas um tal conhecimento intimo é impossível se o outro, enquanto outro, é para mim o objeto destacado de minha contem­plação ou mesmo observação, pois a estas últimas esta totalidade e este centro não se dão a conhecer: o conhecimento íntimo só se torna possível quando me coloco de uma forma elementar em relação com o outro, portanto quanto ele se torna presença para mim (Buber, 1982, p. 147).

Só ouço plenamente quando o outro se torna presença atuante para mim. Aí então, sinto a necessidade da resposta.

Mas neste momento central do diálogo, uma bifurcação é possível.

Se precipito a resposta estrago tudo. Não dou tempo suficiente a esta mobilização e atuo através de uma ligação direta. Minha resposta será apenas o efeito do discurso ou da presença do outro.

Mas se, ao contrário, ainda espero, então permito que surja o novo, e o que surgir será verdadeiramente resposta e não efeito. É somente aqui que se fecha o elo dialógico.

O atendimento psicoterápico de orientação fenomenológica é formado por elos dialógicos desse tipo. As outras falas que visam apenas conferir a compreensão, manter a comunicação ou clarear o sentimento são preparações para a resposta, ou já são implicitamente a resposta, ou então não têm sentido terapêutico algum.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom! me ajudou muitíssimo na atividade acadêmica que tive que elaborar. Obrigada.

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