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ser neurótico: desencontros na psicoterapia e na vida

 "O homem só consegue ser o que é impulsio­nado pela motivação de se fazer a si próprio."

Karl Jaspers

Introdução

O presente capítulo tem por finalidade discorrer sobre a abordagem existencial no que se relaciona às neuroses. Ao con­trário de outras orientações, não é através da rotulação de um indivíduo como neurótico que se chega à prática terapêutica de­terminada. Não se trata de adaptar uma teoria a um indivíduo que se apresenta com conflitos delimitados, e sim de se chegar, através de seus comportamentos e percepções irracionais, a um verdadeiro encontro. Descrever um "neurótico" não é uma tarefa difícil do ponto de vista descritivo, mas compreendê-lo e ajudá-lo sob o seu próprio ângulo a enfrentar seus bloqueios não é uma tarefa assim tão fácil.

Dessa forma, é apresentado inicialmente o problema do diagnóstico usualmente concebido como processo fundamental para a orientação clínica; posteriormente procura-se descrever o que é a neurose e o uso que o indivíduo dela faz; e, finalmente, a forma de acuar terapêutica, que parece contribuir para uma aber­tura maior da percepção do problema, favorecendo sua "cura".

Espera-se que se consiga ver o "neurótico" não como alguém diferente e que precisa de tratamento especial, mas como uma pessoa que ainda não achou o seu caminho de crescimento.

1. Existencialismo e a classificação diagnostica

O que vem a ser "doença mental"? Existe uma verda­deira teoria da patologia? Para nós existencialistas, não existe uma teoria geral que seja capaz de explicar a patologia da conduta, pois isso viria a se opor a princípios filosóficos propostos, a sa­ber, o de que cada indivíduo é uma pessoa concreta, única, livre e realizadora de si mesma; rebelde, portanto, a enquadramentos diagnósticos. Preocupados que estamos em ressaltar a dignida­de existencial, repudiamos a classificação, já que esta antagoniza-se com a própria realidade do fenômeno da existência, classifi­cando ou fragmentando o homem. Isso quer dizer que os existen­cialistas estão mais preocupados em "des-cobrir" o molde so­bre o qual o cliente se criou do que lhe impor um padrão. Por­tanto a perspectiva de trabalho é puramente idiográfica ou des­critiva, já que somente se pode compreender qualquer desordem de conduta de um indivíduo enquanto tal a partir dele mesmo, isto é, tomando-o como unidade fundamental.

Thomas Szasz (1977), um dos críticos maiores das tra­dições rotuladoras da psiquiatria clássica, compara a explicação "científica" da "doença mental" com conceitos explicativos que antes se apoiavam em divindades, feitiçarias ou em forças ins­tintivas. Encarar os problemas das pessoas como oriundos de conflitos, aspirações, enfim, angústias decorrentes de necessida­des existenciais, é ainda muito difícil de ser aceito. Como já visto anteriormente, a conscientização de si mesmo não é algo fácil de ser atingido pelo cliente, uma vez que ocasiona uma enorme carga emocional. O peso da responsabilidade assusta tanto que fica mais fácil obter refúgio em divindades ou na expectativa de que um destino se faz cumprir. Afasta-se a possibilidade de se modelar a si mesmo ou ao mundo para ser modelado por outrem. E é sob essa mesma perspectiva que se procura "enten­der" o ser humano. Encaixá-lo em algo pré-modelado é mais fá­cil do que descobri-lo sobre seu próprio molde. É uma questão de controle.

O problema da classificação psiquiátrica parece residir numa única premissa: existem comportamentos anormais que precisar ser categorizados em prol de um mérito moral. Igualar o comportamento humano a um evento natural, igual a qualquer outro, impõe um status moral nessa premissa, justificando todo o tipo de classificação.

O rótulo diagnóstico da psiquiatria parece ter um peso bastante maior do que aquele atribuído pelo diagnóstico metó­dico. O poder de confiança atribuído a um arquiteto aidético, por ex., difere significativamente daquele atribuído a um arquiteto esquizofrênico; não é verdade?! É como se o diagnóstico psiquiá­trico definisse a identidade pessoal! Tal identidade é pejorativa, já que influencia a conduta de outros em relação ao indivíduo classificado. Há uma espécie de preocupação de sua conduta fu­tura. Todos acabam por responder a essas expectativas!

Classificar fatos ou fenômenos (inclusive pessoas) é pró­prio da ciência. Trata-se de uma forma de obter controle sobre aquilo que é nomeado. É bem verdade que a classificarão facilita a comunicação entre profissionais, objetivando a linguagem, fa­vorecendo análises estatísticas e certas previsões de comporta­mento. Entretanto, considerando que o comportamento huma­no é algo único, baseado na livre escolha, é um contra-senso ten­tar encaixá-lo em algo pré-existente. O homem é um ser que de­cide, a todo momento, sobre o que fará no instante seguinte. há fatalismo, já que ele é o único responsável pelo seu destino.



Essa visão nos obriga a reformular a compreensão da conduta de alguém, pois na medida em que o indivíduo é livre para escolher entre diversas formas de ação, sua conduta pode ser possível apenas dentro de certos limites. Embora sejam lícitas algumas expectativas que são feitas sobre a conduta de uma pessoa, predições exatamente iguais àquelas das ciências natu­rais são inadequadas — nem certas ou erradas — quando aplica­das às ciências humanas, considerando que a repetibilidade das situações é condição sine qua non para a condição falso/verda­deiro da ciência tradicional. Há, nesse caso, uma negligência das diferenças entre as pessoas e coisas, além da peculiaridade de suas linguagens. Tomando como minhas as palavras de Szasz (l 977),

uma coisa é concordar que os negros têm pele.escura e os brancos rósea; outra é chamar um negro de nigger e atribuir-lhe status inferior apropriado a esse rótulo. Afirmo que a rea­lidade das variações de comportamento é semelhante à reali­dade das variações na pigmentação da pele, e que, em geral, os diagnósticos psiquiátricos não implicam a recusa em reco­nhecer as diferenças morais, psicológicas e sociais entre as pessoas. Somente torna para os homens considerados men­talmente sãos degradar e maltratar homens considerados mentalmente doentes.

É claro que a classificação pode ser usada para fins didáticos ou práticos, como um meio de favorecer a compreensão de certos comportamentos, mas isto não quer dizer que se deva basear a prática clínica apenas numa teoria geral.

Existe uma certa lógica em considerar que de um certo modo somos um tanto "insanos". Basta comparar as nossas ações diárias, no que toca a seu significado, com as atividades de ou­tros, no mundo, que nos parecem, às vezes, por demais ridícu­las. Como se pode ser são diante de tanta insanidade? É óbvio que existem aqueles que têm um tipo específico de insanidade, e que, por isso, a sofrem de um modo diferente daquele experi­mentado por nós. Será que com isso devemos pensar que não podemos ajudá-lo, já que apenas estaríamos lhe apresentando um outro tipo de insanidade? Estabelecemos assim um sofisma. Pa­rece que eles têm o direito de viver uma existência humana, ain­da que de uma perspectiva diferente da nossa. Assim, o que se quer deixar claro é que existe uma noção limitada de insanidade que se antagoniza com a noção de uma sanidade viável.

Não se trata de negar que existem diferentes modos de ser-no-mundo, mas o que se questiona é o propósito do ato classificatório que muitas vezes leva a uma forma inumana e im­possível de lidar com os problemas existenciais do ser humano. O arbítrio teórico é tão grande e de tais conseqüências que mui­tas vezes se verifica até o desenvolvimento de "doenças" iatro-gênicas, tamanha a imposição de normas de comportamento em clientes que buscam ajuda para obter crescimento enquanto pes­soa. Além do mais, quando se fala em "doença" se tem como parâmetro a saúde, e "determinar um conceito de saúde parece inútil, quando se tem imaginado a essência do homem como ser não acabado" (Jaspers, 1966).

2. A Neurose e sua utilização

De acordo com May (l 974b),

nos nossos campos, temos estado na estranha posição de de­duzir da doença e da neurose a nossa imagem de homem normal e saudável. As pessoas que não sofrem qualquer de­sarranjo não procuram ajuda, e temos propensão de não per­ceber os problemas de qualquer espécie que não se ajustem às nossas técnicas. Como só identificamos a neurose em vir­tude do fato dos que dela sofrem não se ajustarem, por esse motivo, à nossa sociedade, e como compreendemos a doença em virtude das nossas técnicas, estamos fadados a acabar com uma visão do homem que é um espelho da nossa cultura e das nossas técnicas. Isto resulta, inevitavelmente, numa vi­são progressivamente vazia do homem. A saúde converte-se no vácuo que é fixado quando a chamada neurose é cura­da. No nível da psicose, se um homem pode permanecer fora da prisão e sustentar-se, chamamos a esse vácuo saúde.

Dessa forma, a saúde é definida de acordo com as re­gras impostas pelas exigências culturais. Entretanto, a neurose é uma espécie de método de conduta desenvolvido por cada um para poder defender a sua própria existência. Obviamente, a no­ção da própria existência aí está distorcida, mas o comportamen­to resultante precisa ser coerente com essa imagem (veja Capí­tulo II).

Não é, por esse motivo, muito fácil delimitar marcos referenciais, pois cada indivíduo desenvolve uma dinâmica pró­pria. Entretanto, existem certos comportamentos que se mos­tram bastante característicos, exatamente pelo exagero de suas manifestações. O que se segue é uma tentativa de compreender essa dinâmica para melhor entender o que o indivíduo faz com a sua neurose.

De acordo com o que já foi esboçado anteriormente, o desajuste é o resultado de uma escolha que o próprio indivíduo faz, já que é produto de sua própria criação. Entretanto, se os homens são livres para se escolher, surge uma pergunta: Por que, então, sofrem tão freqüentemente de sintomas desagradáveis como ansiedade, alienação etc? A liberdade para escolher não pode assegurar que as escolhas sejam sábias. Há duas alternativas: ou o indivíduo realiza as suas possibilidades ou escolhe a dimi­nuição do contato para impedir a ansiedade que envolve risco (veja diagrama no final do Capítulo I). Seja qual for a opção, a liber­dade é igual para uma ou para outra, embora as conseqüências advindas sejam de natureza diferente. A escolha está diretamente ligada à aceitação ou não da angústia. As condutas desajustadas são escolhidas como forma de resolver os problemas que vão sur­gindo. As angústias são basicamente resultado de uma inabili­dade de contactar com o mundo e consigo mesmo. Surge a desor­dem da conduta como resultado do conflito entre duas opções básicas: entre a necessidade de mudar-se (de ser) e a de manter-se inalterado (não-ser). Da ansiedade daí resultante nasce o de­sajuste; este nada mais é do que a forma que o indivíduo desen­volve para lidar com o peso da sua angústia. Esta "patologia" é vista como um fracasso no uso da liberdade com o objetivo de atualizar a possibilidade individual. Sabendo-se que o "bom" fun­cionamento do indivíduo é caracterizado pela total utilização de suas possibilidades, pode-se considerar que qualquer bloqueio seja uma forma de "patologia". É, portanto, algo aprendido; re­sultante do medo de não se tornar o que se quer ou pode ser.

Evidentemente, os filósofos existenciais não estavam preocupados em descrever a neurose, e sim compreender o ser como tal; mas, ao estudá-lo, percebemos que, assistematicamente, deixaram sua contribuição. Kierkegaard (1941), por ex., diz que as neuroses são um resultado da perda do "Self", de uma alie­nação interna — posição semelhante ao que Tillich (1976), mais tarde, desenvolve ao dizer que neurose é resultado de um "Self" reduzido e de potencialidades não atualizadas. Para Sartre (l 948/ 1949), a neurose é uma conseqüência de um falso projeto de ser, isto é, de uma forma inautêntica de realizar o projeto. A angús­tia neurótica surge no indivíduo como resultado da exagerada reação ao não-ser, do medo de perder a relação com o outro e de ter que enfrentar as possibilidades de realização. Por não atua­lizar todo o seu potencial -, caminho escolhido para driblar a liberdade e responsabilidade ansiogênicas — surge a culpa alimen­tada pela sensação de incompletude. A culpa ontológica é devi- do a essa falha na realização do potencial, mas se transforma em culpa neurótica quando o indivíduo permite que a omissão tor­ne-se um modo de vida e não consegue fazer algo para mudar a situação.

May (1974a), numa definição mais psicológica, nos diz que:

neurose não deve ser considerada como um desvio de nos­sas teorias particulares acerca do que deveria ser uma pes­soa. Acaso a neurose não é, precisamente, o método que usa o indivíduo, a fim de preservar seu próprio centro, sua pró­pria existência? Seus sintomas são formas de estreitar a am­plitude de seu mundo, a fim de que o centrismo de sua exis­tência resulte protegido da ameaça: uma forma de bloquear aspectos do ambiente, a fim de ficar disponível para os res­tantes. É inadequada a definição das neuroses como um fra­casso na adaptação. Precisamente a neurose é uma adapta­ção; e é aí precisamente que radica seu mal. É uma adaptação necessária, mediante a qual se preserva o centro; é uma ma­neira de aceitar não-ser, se me permite tal expressão, a fim de que possa preservar-se algum ser, ainda que restrita.

O problema não está, portanto, na neurose como uma falta de ajustamento, e sim na limitação do âmbito do mundo pessoal que precisa ser definido e no qual a neurose é apenas um ajustamento. O pouco contato consigo mesmo faz exacerbar comportamentos defensivos necessários à manutenção da pou­ca imagem que se possui. O indivíduo que adquire esses "desa­justes" geralmente não "pode" decidir por si mesmo, pois não é completamente capaz de distinguir sozinho o que é melhor para ele. Abrindo mão da liberdade de escolha, ele não consegue selecionar meios apropriados para atingir seus objetivos; não con­segue ver as opções que lhe estão abertas. Sua autoconsciência é restrita; dessa forma, suas opções são mais estreitas. A auto-ava liação fica pouco precisa, e então há necessidade de defender constantemente a pouca identidade que já conseguiu. Não so­bra energia para viver-no-mundo. Há uma espécie de alienação do "verdadeiro" Self. Resta daí um círculo vicioso, isto é, sem sen­tir seu mundo interior de modo seguro, não sente o mundo do outro. Por sua vez, sem estabelecer uma relação efetiva com o outro, não pode ampliar seu mundo de experiências e, conseqüentemente, o sentido de identidade.

Fazer opções faz parte da vida do homem que está em constante mudança. A cristalização num modo de conduta ob­soleto e absoluto constitui a própria neurose; fica difícil satisfa­zer as necessidades de sobrevivência, individuais e sociais, quan­do se é incapaz de alternar formas de interação com o meio. Não há como satisfazer tais necessidades se não se consegue distin­gui-las do resto do mundo. Além do mais, o mundo, nesse caso, parece ser maior do que o seu próprio-Self. Vivendo rigidamen­te num mundo privado de idéias que o faz viver de forma extra­viada, ocorre o que se chama "transtorno do contato". Fica ex­tremamente difícil para indivíduos com essas características ob­ter relações adequadas com o outro, da mesma forma que com­preender adequadamente a gama de potencialidade que pode de­senvolver. Isso pode ser explicado pela própria responsabilida­de de decisão. Extremamente apegado ao passado ou a expecta­tivas do futuro, não consegue permanecer responsavelmente no presente. Trata-se de uma defesa que se expressa na fuga do con­tato com o momento presente que se torna bastante ameaçador. É no experienciar que se faz opções, e, evidentemente, se corre risco. Indivíduos que acabam por optar por comportamentos neuróticos o fazem por medo de arriscar se perder, e por isso não arriscam ser. Expressando preocupação pelo que já ocor­reu, pretendem modificar o que está para vir, de acordo com seus ideais, e não com as experiências. Tentando se proteger do te mor de perder a vida — vivem o temor de perder suas próprias defesas — paradoxalmente, se perdem na vida. Por essa razão, cer­to aspecto do social tende a ter uma influência exagerada sobre esses indivíduos. Como sua existência está obscurecida por não terem desenvolvido certas zonas de sua personalidade — estão mais preocupados com o Umvelt (mundo das necessidades) do que com o Eigemvelt (mundo próprio) — deixam o meio dominar para poder satisfazer a si próprios. Trata-se de uma forma de­fensiva e manipuladora de proteção contra a ameaça de serem rejeitados, de assim atingirem um auto-equilíbrio, pois sentem que todas as chances estão contra eles. É conveniente deixar a responsabilidade de decisão com "alguém" mais forte; é menos ameaçador. Manipular o meio para fazer com que este satisfaça suas necessidades - algo que não consegue fazer sozinho — pa­rece ser o objetivo central.

Ora, se a conscientização da liberdade, pelo próprio in­divíduo, é o que dá o significado à vida, podemos dizer que todo esse uso da neurose como forma de manipulação do meio é re­sultado de uma perda do sentido de vida; por isso está constan-temente em busca de um significado. O fracasso nessa busca acar­reta o que Frankl (1976) chamou de "vazio existencial", vazio decorrente da frustração que o indivíduo experimenta por não saber o que precisa ou deve fazer. Só é possível a auto-realização quando o ser humano encontra seu real sentido de vida. Logo, a auto-realização ocorre como uma conseqüência natural disso.

3. Tratamento das neuroses pela Psicoterapia Vivencial

A partir da compreensão do que vem a ser um desajuste, chega-se à conclusão de que não se pode fundamentar a prática terapêutica sobre rótulos diagnósticos atribuídos a alguém. Tor­na-se necessária a noção de indivíduo e também realizar um tra tamento de pessoa para pessoa. Antes, porém, de descrever e processo, devem ser ressaltados dois possíveis erros decorrentes da má interpretação do papel do terapeuta na busca da cha­mada "cura" terapêutica: o que se pode denominar a mística do conhecimento e a mística da intuição. Na primeira, o conhecer se re­duz a um mero saber intelectual. É como se bastasse o conheci­mento do que o cliente apresenta como quadro para aplicar a téc­nica adequada, e assim atingir a "cura". Por outro lado, está a mís­tica da intuição, que equivale ao charlatanismo terapêutico, basea­do no fato de que o saber sistemático não interessa e sim a arte de curar por meio da simples intuição: onde fracassa a ciência se confia na própria arte, acreditando-se numa disposição "natu­ral" para curar alguém.

Evidentemente, conhecimento e intuição sobre o indi­víduo são necessários para uma boa atuação terapêutica, não se podendo, por isso, negligenciar nem um nem outro. Se a finali­dade da terapia é apelar à consciência da responsabilidade e à afir­mação do indivíduo como pessoa responsável, é claro que ao terapeuta não cabe apenas um acúmulo teórico e uma posição filosófica sobre sua terapia, mas também atitudes pessoais que são importantes para o seu bom desempenho.

Se a preocupação é idiossincrática, nada mais importan­te do que captá-la para ajudar o cliente a se reestruturar. Se a per­cepção do mundo do "neurótico" está distorcida a ponto dele não estar vivendo bem com ele mesmo, o comportamento de­terminado pela sua percepção será alterado na medida em que essa se modifica.

Infelizmente, muitas vezes a pessoa humana é esqueci­da em prol de generalizações que a rotulam e que afastam, as­sim, a verdadeira compreensão do cliente dentro de sua própria realidade. Ao procurar terapia, o cliente traz sua própria existên­cia, seu ser-no-mundo, em cada comportamento verbal ou não-verbal expresso. É uma atitude do terapeuta "entrar" nesse mun­do para captar e desenvolver, independentemente de ser o cliente "normal" ou não. A, psicoterapia vivencial auxilia por demais essa tarefa: na atuação do terapeuta como ser-com-o-outro, in­terpreta os problemas do cliente, transportando-se empaticamente para o seu mundo, sem perder sua própria identidade. É através da intersubjetividade que se entende o ser, o seu mundo e sua forma de se expressar no mesmo. Ver de forma subjetiva a pessoa, percebendo o que está na consciência do outro; sentir, vivenciar e experienciar o outro.

A terapia, nesse caso, permite resgatar a liberdade de po­der utilizar suas próprias capacidades para existir. O indivíduo que manipula esses comportamentos neuróticos precisa rea­prender a utilizar sua própria capacidade de optar livremente e responsavelmente. Aprende a viver em harmonia com as condi­ções ontológicas de sua existência. Enxergando as possibilida­des habitualmente bloqueadas por seus sintomas defensivos, o cliente prepara-se, de forma significativa, para a comunicação consigo mesmo e com o outro.

Sendo esses indivíduos ameaçados constantemente pelo relacionamento interpessoal — evitam contato como forma de reduzir a ansiedade, na verdade oriunda da maior responsabili­dade que ocasiona o envolvimento - o relacionamento terapêu­tico facilita a transformação dessa visão. Percebem aos poucos que podem ser-com-o-outro, ou seja, sair do seu centro sem se sentirem inseguros, sem se perderem, ou ao outro, nessa troca. É o próprio relacionamento que facilita isso, pois, diferentemente da relação psicanalítica em que o analista é um passivo objeto de transferência, nessa abordagem o terapeuta vai ao e de encontro ao cliente, numa troca em que, se inicialmente serve de modelo à atitude do cliente, posteriormente o "impulsiona" a romper suas estruturas cristalizadas. Arriscando na relação junto ao terapeuta, generaliza para outras formas de relação interpessoal. É nesse estar-junto-a que a pessoa se sente capaz de crescer como quer existir, fazendo com que se volte mais para si mesma, transfor­mando suas percepções simples do mundo em conscientizações autênticas do mesmo.

Mas, o auto-conhecimento não é o mesmo que conhe­cer a si mesmo de uma forma definitiva, posto que só se pode chegar à mudança através da percepção contínua do que se é de instante a instante (Self-como-processo). O esforço do "neurótico" para ser o que deseja afasta-o da possibilidade de "ser o que é". Se o indivíduo é um processo, precisa aprender a se deixar ser, sem medo, para poder alcançar uma existência mais autêntica.

O aumento da conscientização dos dados de sua expe­riência passa a ampliar suas opções existenciais; sua experiência passa por um crivo de avaliação própria, fazendo com que o ris­co não mais seja bloqueado para dar lugar a um vir-a-ser mais espontâneo e realizador. É a tendência atualizante, antes bloque­ada pelo medo e insegurança, que passa a se exprimir com mais clareza na atuação do ser. Sendo aceito pelo terapeuta, sente-se livre para deixar de lutar desesperadamente pelo apreço do ou­tro, e passa a se ocupar mais de si mesmo. Assim, a aceitação in­condicional do terapeuta leva a uma aceitação de si próprio.

Conclusões

Terapias que buscam a "compreensão" do indivíduo apoiadas simplesmente no puro arbítrio teórico fazem um en­tendimento distorcido, reforçando apenas a sua própria verda­de. Na tentativa de manterem seus princípios congruentes, alte­ram a visão do próprio indivíduo que, na realidade, é quem pre­cisa de ajuda. A rigidez de seus dogmas implica em rigidez de atitude, que acredito decorrerem do medo de arriscar, tal como ocorre, analogamente, no indivíduo "neurótico". Como poder tratar de distúrbios de comportamento praticando o próprio dis­túrbio da compreensão? Doando-se é que se obtém a doação; auto-relevando-se é que acaba engendrando a auto-revelação e a abertura ao que está para vir. Tudo isso é encontrado e refor­çado pela própria relação terapêutica, não muito representada nas formas freqüentemente rígidas com que se realizam as tera­pias analítica e comportamental, por ex., cujo apego a princípios teóricos e técnicos deles decorrentes facilitam o distanciamento entre terapeuta e cliente, seja neurótico ou não.

O encontro na relação terapêutica recria e permite o en­contro na vida.





ERTHAL, Tereza Cristina S. Psicoterapia vivencial: uma abordagem existencial em psicoterapia. Campinas/SP: Ed. Livro Pleno, 2004

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