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Adoecimento: O Ser-para-a-Morte e o Sentido da Vida.

Barbosa, L. N. F.; Francisco, A. L. & Efken, K. H.

Pesquisas e Práticas Psicossociais, 2(1), São João del-Rei, Mar./Ag., 2007.

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Adoecimento: O Ser-para-a-Morte e o Sentido da Vida

Falling ill: The Being-for-Death and the Meaning of Life

Leopoldo Nelson Fernandes Barbosa1, Ana Lúcia Francisco2,

Karl Heinz Efken3

Universidade Católica de Pernambuco

Resumo

É comum, em pessoas que experimentam uma situação inesperada, tal como, ser acometido brutalmente por um acidente ou receber o

diagnóstico de uma doença grave, a vivência de um período de “crise” permeado por reflexões sobre a vulnerabilidade da vida e a uma

sensação de proximidade com a morte. Este momento tem seu agravamento, se o paciente vivencia períodos de hospitalização, recebe

tratamentos invasivos, como cirurgias e/ou apresenta alguma seqüela posterior. O impacto do adoecimento pode paralisar a existência

humana visto que afeta a relação do indivíduo com o mundo. Diante disto, a perspectiva fenomenológica existencial contribui para a

psicologia clínica na medida em que nos faz transformar a nossa forma de ver o paciente que sofre e, quando conseguimos dar voz a este

sofrimento, contribuímos para que a sua vida tenha verdadeiramente o seu sentido.

Palavras-chave: crise, adoecimento, hospitalização, psicologia clínica.

Abstract

For those people who live unexpected situations, like being brutally reached by an accident or receiving the diagnosis of a serious illness, it

is common to experience a period of “crisis” together with reflections on the vulnerability of life, and with a sensation of proximity to death.

This moment is worsened if the patient lives periods of hospitalization, receives invasive treatments as surgeries, and/or presents some later

after-effects. The impact of the illness can paralyze the human existence since it affects the relation of the individual to the world. Thus, the

existential phenomenological perspective can contribute to clinical psychology insofar as it makes us change our way of seeing the patient

who suffers, and, when we manage to give voice to this suffering, we contribute to truly give his life a meaning.

Key words: crisis, suffering, falling ill, hospitalization, clinical psychology.

1 Psicólogo Clínico, Especialista em Psicologia Hospitalar pela Santa Casa de São Paulo. Bolsista (PROSUP/CAPES) do Mestrado em

Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Endereço para correspondência: Av. Beira Rio, 230, aptº 101. Ilha

do Retiro. Recife-PE. Cep. 50.750-400.. Endereço eletrônico: lnfbpsi@uol.com.br

2 Profa. Dra. Docente da graduação e pós-graduação do departamento de psicologia da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP.

Coordenadora da linha de pesquisa “Práticas Psicológicas em Instituições” e Líder do grupo de pesquisa em Psicologia clínica.

3 Prof. Dr. docente da graduação do departamento de filosofia e do mestrado em psicologia clínica da Universidade Católica de Pernambuco

– UNICAP.

É bastante comum, frente a situações inesperadas,

tal como, ser acometido brutalmente por um acidente

ou receber o diagnóstico de uma doença grave, o relato

sobre a vivência de um período de “crise” permeado

por reflexões sobre a vulnerabilidade da vida e, em

muitos casos, a uma sensação de proximidade com a

morte. Este momento tem seu agravamento, sobretudo,

se o paciente é internado em um hospital, recebe

tratamentos invasivos, como cirurgias e/ou

apresenta alguma seqüela posterior.

Segundo Arendt (2005), o que quer que

toque a vida humana ou entre em duradoura

relação com ela, assume imediatamente o

caráter de condição humana. Com a

hospitalização, há um profundo sentimento de

desalojamento e de referência temporal e o

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indivíduo pode sentir-se afastado do que lhe é familiar

e que lhe serve de contorno em sua existência. Como

dito por Botega (2002), o impacto de uma doença

imobiliza e congela a existência humana, afetando a

sua relação com o mundo.

A vivência da hospitalização, per si, traz esta

sensação, principalmente quando o paciente permanece

internado por longos períodos. A prática da psicologia

hospitalar nos põe em contato com um paciente que se

questiona: “Por que eu?”. Nesta experiência, podem

surgir sentimentos de raiva e depressão que afetam

tanto o paciente quanto a família, interferindo, sem

dúvidas, em todo o percurso do tratamento. A

hospitalização retira o paciente de um lugar seguro, da

sua casa, do seu trabalho, da sua família, para um lugar

diferenciado. Ele sai de uma posição em que tinha

plena autonomia para a submissão a outros que possam

decidir por ele.

Embora mantenham algumas convergências, é

preciso assinalar diferenças marcantes na vivência da

hospitalização em instituições públicas e em privadas.

O serviço de hotelaria em hospitais privados preza pela

boa comida e um ambiente agradável, procurando

manter uma equipe organizada e disponível diante de

alguém que sofre. No caso das instituições hospitalares

públicas, frequentemente acontece o inverso: o

paciente sofre, não tem serviço de hotelaria, falta

medicação, a comida pode não ser preparada seguindo

instruções nutricionais adequadas àquele paciente e

frente a reclamações de seu sofrimento recebe, em

alguns casos, o rótulo de “paciente chato”. A realidade

do setor público, na contemporaneidade, nos mostra

que a condição humana, totalmente fragilizada, é

perpassada por uma perspectiva que violenta os

direitos humanos básicos.

Mas, como já dito, há convergências que, pelo seu

caráter, merecem destaque. Por exemplo, a presença de

médicos especialistas, enfermeiros, auxiliares,

psicólogos, fonoaudiólogos, nutricionistas,

fisioterapeutas, entre outros, preparados para a

expectativa de cura ou extinção rápida de sintomas, o

que os leva, pela precariedade da situação, a olhar o

paciente como um objeto.

Neste contexto, não é raro observar a demanda

para que psicólogos e psiquiatras funcionem, em certos

momentos, como verdadeiros “bombeiros”,

especialmente quando o paciente chora, reclama, fica

triste, até porque, neste estágio, ele já recebeu um

diagnóstico de depressão pela própria família. Ao

paciente não é permitido nem ao menos reclamar ou

chorar; falar de morte, então, lhe é totalmente vedado e

velado. O discurso é sempre o de que tudo vai ficar

bem e que não há motivos para preocupações. Não que

este discurso não deva existir; consideramos sim a

necessidade de se estimular o paciente para a melhora

de seu quadro. No entanto, queremos apenas ilustrar o

velamento do sofrimento do paciente, através de um

discurso que pede para ser falado e que busca um lugar

para ser escutado. O paciente precisa ter voz

ativa em todo o seu tratamento.

Acreditamos que esta reflexão é pertinente

na medida em que, consultando a bibliografia

sobre o assunto, percebemos que a equipe

“interdisciplinar”, comumente, enfatiza os

aspectos técnicos da situação, não se

enfatizando as questões éticas relacionadas ao

significado deste diagnóstico. Neste sentido,

pretendemo, através da aproximação com

pressupostos oriundos da fenomenologia

existencial heideggeriana, pensar sobre o

sentido da morte para o ser humano e como ele

se coloca frente a essa possibilidade, esperando

que estas problematizações possam contribuir

para uma ação clínica voltada para a ética do

humano. Espera-se que a abordagem deste tema

possa oferecer subsídios à equipe que cuida e

está em contato direto com o paciente,

compartilhando com ele a aproximação de sua

finitude decorrente do adoecimento, da

hospitalização e dos subseqüentes tratamentos.

A fenomenologia existencial no contexto

hospitalar

Em contraponto ao movimento metafísico4,

a fenomenologia foi se constituindo como

crítica a ciência (Critelli, 1996). Em Heidegger

(1998a), ela exprime a máxima que se pode

formular na expressão “as coisas-em-simesmas”

produzindo um outro sentido a este

movimento. Considerando a fenomenologia

como ciência dos fenômenos e entendendo-os

como algo que se revela ou que se mostra a si

mesmo, a sua compreensão depende, então, dos

seus diferentes significados, inter-relacionados

no processo de sua revelação/ocultação. A

respeito da doença como fenômeno, o autor

afirma:

“É muito corrente falar-se de manifestações

de uma doença. O que se tem em mente são

ocorrências que se manifestam no organismo e,

ao se manifestarem, “indicam” algo que em si

mesmo não se mostra. O aparecimento destas

ocorrências, o seu mostrar-se, está ligado a

perturbações e distúrbios que em si mesmos não

se mostram. Em conseqüência, manifestação

enquanto manifestação de alguma coisa não diz

um mostrar-se a si mesmo, mas um anunciar-se

4 “(...) para o pensar metafífico, toda possibilidade de um

conhecimento válido e fidedigno é garantida pela construção

de conceitos logicamente parametrados e de um aprivação

da intimidade entre os homens e seu mundo, isto é, entre os

homens e a experiência que tem de seu mundo. Ora, um tal

conhecimento é tão somente a articulação de uma

alternativa de aproximação do real, ainda que devidamente

planejada e estruturada. Mas nem por isso, seria a única

afiançável (...)”(Critelli, 1996, p.14)

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de algo que não se mostra. Manifestar-se é um não

mostrar-se. No entanto, este “não” de forma alguma

pode ser confundido com o não privativo, que

determina a estrutura do aparecer, parecer e aparência.

O que não se mostra desta maneira, como o que se

manifesta, também nunca poderá aparecer e parecer.

Todas as indicações, apresentações, sintomas e

símbolos possuem a estrutura formal básica da

manifestação, embora sejam diferentes entre si” (p.

59).

Apesar da manifestação não ser nunca um mostrarse

completo do fenômeno, qualquer manifestação só é

possível com base no mostrar-se, pois, manifestar-se é

anunciar-se mediante algo que se mostra. Diante disto,

ao refletirmos sobre o fenômeno da doença em suas

diferentes formas de manifestação, percebemos que o

que se mostra são os sintomas e os sofrimentos

decorrentes destes. Entretanto, o que se oculta são as

rupturas não visíveis na sua manifestação, mas

presentes na composição do próprio fenômeno.

Nesta linha de raciocínio, a doença seria o

fenômeno e a busca de sua compreensão o logos que se

produz acerca dela. A perspectiva heideggeriana nos

mostra que, para além de designar conhecimento

acerca de algo, logos é tomado como discurso e, neste

contexto, o discurso revela e torna acessível aos outros

o fenômeno sobre o qual se discorre, tomando,

portanto, o caráter de fala. Assim, o discurso “deixa e

faz ver” a partir daquilo sobre o qual discorre de tal

modo que a comunicação discursiva possa revelar e

tornar acessível aos outros o que se experiencia.

A fenomenologia é, então, uma via de acesso e um

modo de verificação vez que busca refletir sobre o serdas-

coisas enquanto possibilidade de discorrer sobre

suas formas de manifestação. Para Heidegger (1998a),

ontologia5 e fenomenologia caracterizam a própria

filosofia em seu objeto e modo de tratar, encontrando o

seu ponto de partida na hermenêutica da pre-sença,

que, enquanto analítica da existência, amarra o fio do

questionamento filosófico do lugar de onde ele nasce e

para onde retorna.

Corroborando com esta reflexão, Critelli (1996)

ressalta que a fenomenologia aponta para o limite de

uma perspectiva epistêmica na medida em que se

coloca sob questão a crença da metafísica na unicidade

da verdade e na busca de um conhecimento absoluto.

Neste contexto, a interpretação fenomenológica

compreende o modo como se conhece os fenômenos

não como “a verdade” acerca deles, mas como uma

5 Ontologia em seu sentido mais amplo independe de correntes e

tendências ontológicas, é mais originário que as pesquisas ônticas

das ciências positivas. É uma genealogia dos diversos modos

possíveis de se ser, que não se deve construir de maneira dedutiva

(Heidegger, 1998a). Nas palavras de Safra (2005), ontológico

relaciona-se aos fundamentos da condição humana. O que funda o

ser humano para além do tempo, além do biográfico. Em

contraponto, ôntico relaciona-se aos acontecimentos no tempo e no

mundo, aos registros da experiência.

perspectiva possível, entre outras, sendo o

conhecimento, portanto, relativo e provisório.

A relatividade é percebida pela

fenomenologia como uma condição que os entes

têm de se manifestar no horizonte do tempo e

no seu incessante movimento de mostrar-se e

ocultar-se. Em contraponto a metafísica que

busca, através de uma abordagem lógica do ser,

superar a insegurança através do conhecimento,

a fenomenologia instaura-se na angústia dada

pelas infindáveis formas de se ser (Critelli,

1996).

Tal como Heidegger (1998a), Critelli

(1996) afirma que a vida humana está em

perpétuo deslocamento e o modo humano de

ser-no-mundo – viver – jamais alcançará

qualquer fixidez. Mudam-se as idéias, as

sensações, as emoções, as perspectivas, os

interesses, as lembranças, os significados, o

modo de nos relacionarmos com os outros e

com as coisas. Portanto, a experiência de viver

do homem é, desde sua origem, a experiência da

fluidez constante, da mutabilidade, da

inospitalidade do mundo e da liberdade; esta é a

sua condição humana, quase como sua natureza.

Na contemporaneidade, com a intenção de

se livrar da angústia da inospitalidade do

mundo, o homem parece criar mecanismos de

controle excessivos. Hoje, não se fala em

simplesmente viver, mas em controlar a vida,

ainda que se saiba da sua contingência e

finitude. A tecnologia cria formas ultramodernas

de manter a vida a qualquer preço,

seja para o bem da ciência ou para fins

financeiros.

Em que pese os avanços técnico-cientificos

no diagnóstico e tratamento de um conjunto de

quadros clínicos, parece-nos necessário uma

breve reflexão acerca do cuidado e dos

dispositivos6 utilizados pela ciência médica.

Observa-se que, não raramente, este cuidado

visa, em muitos casos, a imortalidade do

homem, haja vista o crescente interesse nos

programas de congelamento de corpos ou de

parte destes, referenciados pela mídia, para

serem acordados ou ressuscitados no futuro

quando for descoberta a cura de determinadas

doenças.

Para quem estes cuidados são dirigidos e

qual a finalidade desses dispositivos, coloca-nos

frente a questões éticas fundamentais para a

condição humana, na medida em que se assiste,

6 “(...) Dispositivo refere-se a um conjunto decididamente

heterogêneo que englobe discursos, instituições,

organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,

medidas administrativas, enunciados científicos,

proposições filosóficas, morais, filantrópicas. (...) O

dispositivo tem, portanto, uma função estratégica

dominante” (Foucault, 1995, p. 244)

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muitas vezes, a unificação de procedimentos

tecnológicos na medicina que objetivam o

prolongamento da vida sem nenhuma condição

humana.

O sentido da vida é simplesmente viver? É comum,

em processos de adoecimento e de hospitalização, a

proximidade com a precariedade de nossa condição

humana e com a instabilidade do mundo. Estes são

momentos “privilegiados” em que nos deparamos com

o contingente, com a finitude e com a privação de

liberdade impulsionando-nos a refletir sobre o real

sentido da vida. Observa-se que muitas dessas

reflexões modificam conceitos, metas, objetivos e

posturas pessoais em torno da própria existência, que

necessitam ser faladas e ouvidas e, talvez, esta seja

uma das principais funções do psicólogo no contexto

hospitalar: cuidar, colocar-se à escuta do que não quer

se calar e ouvir a denúncia despertada pelo sofrimento

que está para além do adoecimento de um corpo.

Nesta perspectiva, concordamos com Boff (1999)

quando ressalta o cuidar como atitude e não mero ato.

Abrangendo mais que um momento de atenção, de

zelo, de desvelo, o cuidado representa uma atitude de

preocupação, de responsabilização e de envolvimento

afetivo com o outro. Amparado nos pressupostos

heideggerianos, este autor indica, ainda, que o cuidado,

enquanto fenômeno ontológico-existencial básico,

encontra-se no a priori, na sua raiz, antes de toda

atitude ou situação humana, devendo ser reconhecido

como um modo-de-ser essencial. Sem o cuidado o

humano deixa de existir e, se não receber cuidado,

desde o nascimento até a morte, o ser humano

desestrutura-se, definha-se, perde sentido e morre.

Em concordância com este pensamento, Stein

(2005) nos diz que ser-no-mundo significa ter como

seu ser o cuidado, cujo sentido é a temporalidade

estática e não linear ou objetivável, tal como sustentada

pelos princípios da tradição metafísica. O estar-ai,

desde sempre, se compreende em vista da existência,

da facticidade, da decaída e o mundo humano é

estruturado a partir do cuidado que tem uma maneira

específica de temporalidade, manifestando-se na morte.

“(...) Somente a partir da morte se compreende um

poder-ser-total que, entretanto nunca se realiza: ou

ainda não somos totais, ou então, quando totais, não

mais nos podemos compreender” (p. 78).

A compreensão da finitude é dada através do

discurso que, para Heidegger (1998a), é um existencial

originário da abertura do ser-no-mundo, devendo,

também, possuir em sua essência, um modo de ser

mundano para que a linguagem possa tornar-se a sua

forma de pronunciamento.

A escuta e o silêncio, por pertencerem à linguagem

como possibilidades intrínsecas, tornam-se função

constitutiva do discurso para a existencialidade da

existência. E é somente onde se dá a possibilidade

existencial de discurso e escuta que se torna possível

ouvir (Heidegger, 1998a). É através da palavra, da

linguagem, que as coisas chegam a ser. É no fazer-se

da linguagem do ser que o homem vem a si

mesmo e o mundo vem ao homem e a

linguagem é um constante desvelar-se e velar-se

do ser na história da humanidade (Sleutjes,

2001).

Alcançar a totalidade da pre-sença na

morte, segundo Heidegger (1998b), é ao mesmo

tempo perder o ser do presente. Esta transição,

para o “não mais estar pre-sente”, retira a presença

da possibilidade de realizar a experiência

desta transição, bem como de, também,

compreendê-la. A morte dos outros, todavia, é

tomada como uma possibilidade, visto que o

findar da pre-sença é objetivamente acessível e,

sendo necessariamente ser-com-os-outros, a

pre-sença poderá obter uma experiência de

morte.

Temos muito a aprender com os relatos de

experiências dos pacientes: sobre a vivencia do

adoecimento, da hospitalização, da reação

vivida com a privação de liberdade e a

possibilidade da sua própria morte. Através do

discurso o paciente poderá, como dito

anteriormente, expressar suas vontades e

desejos e entendemos que ao cuidá-lo existirá

uma possibilidade de lhe dar voz ativa sobre a

sua própria vida.

Um ser-para-a-morte e o sentido da vida

Por que refletir sobre a morte se estamos

falando de tratamentos, possibilidades de cura

ou de voz ativa sobre a vida? Em coerência com

a perspectiva adotada neste ensaio, a morte é

entendida como inerente ao ser e faz parte da

vida. Ela é, senão, a única certeza que se tem.

O paciente grave, como dito por Souza e

Boemer (2005) é um ser que tem parte de si

afetada pela doença e apresenta-se como um

“sendo-doente”. Neste sentido, uma pessoa que

apresenta o seu mundo afetado por esta

vivência, comprometendo suas possibilidades

de vir-a-ser, experimenta um não-ser, que se

revela com a consciência de que todo ser

humano é um ser-para-a-morte.

Vale destacar que, na sociedade moderna,

as várias formas e contextos em que o morrer se

apresenta, geram repercussões e incitam a

inúmeras discussões, principalmente no campo

da bioética. Interessante observar que, apesar de

todo o aparato tecnológico atual, há muitas

razões para não se encarar a morte de uma

maneira serena, uma vez que, sobretudo em

procedimentos invasivos, questiona-se o sentido

de manutenção de uma sobrevida pouco digna.

Este questionamento encontra ressonâncias

na perspectiva apontada por Kübler-Ross (1989)

quando destaca que, hoje, morrer é percebido

como bastante solitário, mecânico e desumano.

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Distantes estão os dias em que era permitido ao homem

morrer dignamente no seu próprio lar, sem contar que

um paciente gravemente enfermo, geralmente, não tem

o direito de opinar e, nesses casos, custaria muito

pouco lembrar que o doente tem desejos, sentimentos,

opiniões e, acima de tudo, o direito de ser ouvido.

A morte acompanhada com temor e aflição pelos

homens parecia ser, na antiguidade, vivida com maior

tranqüilidade. Hoje, como fonte de interesse da ciência

na busca de estratégias que possam domá-la, ela é

percebida como aterrorizadora na medida em que é

representada como desfiguramento do corpo e

submissão ao desejo do outro. Seguindo esta linha de

pensamento, Souza e Boemer (2005) pontuam que os

profissionais de saúde, encarregados de cuidar da saúde

do homem também buscam espaçar, ao máximo, esta

vivência tão temida.

Trabalhando em torno desta temática, Kovács

(2003) relata, ainda, que a medicalização da morte

favorece a sua desconstrução (velamento), define

parâmetros e ela passa a ser entendida como processo e

não mais como constitutivo do humano. Em muitos

casos, a família não sabe se está diante de um vivo ou

de um morto. O hospital se encarrega de elaborar

horários de visitas para tamponar o que não “pode” ser

visto e, assim, com o encobrimento do sofrimento, o

paciente sofre isoladamente, tendo como companhia,

aparelhos ultra-modernos que realizam as funções dos

seus órgãos vitais.

É essa total negação da morte, inerente à condição

humana, que nos inquieta e nos faz buscar subsídios

para melhorar o cuidado com o paciente. Hoje crescem

os movimentos de humanização no contexto hospitalar,

são divulgadas mais claramente as informações sobre

cuidados paliativos e a ética e a bioética surgem como

reforços nesta “batalha”, ainda longe do seu fim.

Não há interesse, nesse ensaio, em criticar a

tecnologia que vem sendo desenvolvida para a

melhoria das condições humanas, mesmo porque ela é

de grande importância e, sem dúvidas, traz enormes

contribuições. A questão, aqui, diz respeito a sua

utilização para manter a vida a qualquer custo,

principalmente quando a morte já foi anunciada. Sobre

a importância de se valorizar o contato profissionalpaciente,

Souza e Boemer (2005) consideram que esta

busca desenfreada para o bem estar do homem

moderno, pode se transformar em um percurso

desumano e desprovido de vínculos.

Os estudos com pacientes graves realizados por

Kübler-Ross (1989), ressaltam a importância da

humanização e dos vínculos afetivos, seja entre equipepaciente

ou família-paciente. Na tentativa de dar voz

ao paciente através da escuta, a autora percorreu um

longo caminho até a aceitação do seu trabalho pelas

equipes médicas. Relata que, por não compreenderem a

importância do seu trabalho, questionavam o que ela

desejava “incomodando” os pacientes, já tão

debilitados. Através da análise dos seus discursos, ela

observou a existência de cinco fases que permeiam o

adoecimento: negação ou isolamento, raiva,

barganha, depressão e aceitação, esclarecendo

que todas as fases podem ocorrer ou não, bem

como não há uma ordem exata para o seu

aparecimento.

A importância desses estudos contribuiu

para uma ampla reflexão e discussão de suas

conclusões no campo da saúde, principalmente

entre os psicólogos. Entretanto, também se

percebe certa “colagem” a estes conceitos, o que

veio a “moldar”, de uma certa forma, as

pesquisas e publicações relacionadas ao

contexto hospitalar, pouco se problematizando

os aspectos bioéticos envolvidos nesses

processos. Vale destacar que a vivencia destas

fases vai ser única em cada paciente e

dependerá, principalmente, do contexto

psicossocial em questão, envolvendo o suporte

familiar, da equipe de saúde e o suporte

emocional adequado durante todo o percurso do

adoecimento.

Por não podermos vivenciar a nossa própria

morte, é somente a partir da vivencia da morte

dos outros que somos afetados (Heidegger,

1998a). Neste ponto, a morte se transforma em

vida, levando-nos a ver de outro modo o

paciente que sofre e, na medida em que

conseguimos dar voz a este sofrimento,

contribuímos para que a sua vida tenha

verdadeiramente o seu sentido.

Ser-no-mundo é ser-com-os-outros e, neste

contexto, torna-se impossível uma ação

individual do homem (Critelli, 1996, Arendt,

2005). Não somente porque o homem vive em

sociedade, mas, como sua condição originária,

lhe é dado à coexistência, como si mesmo e

como os outros, simultaneamente (Critelli,

1996). A fenomenologia preza o aspecto social

do ser, preocupa-se como ele vive o seu sercom-

os-outros, como ele se relaciona, atua,

sente e vive com os seus semelhantes (Souza e

Boemer, 2005).

Apenas para ilustrar esta temática,

recorremos a John Donne (1572-1631), poeta e

escritor inglês que, em uma das suas principais

obras, conhecida como “Meditação XVII” de

1624, escreveu:

“Nenhum homem é uma ilha, sozinho em si

mesmo; cada homem é parte do continente,

parte do todo; se um seixo for levado pelo mar,

a Europa fica menor, como se fosse um

promontório, assim como se fosse uma parte de

seus amigos ou mesmo sua; a morte de qualquer

homem me diminui, porque eu sou parte da

humanidade; e por isso, nunca procure saber por

quem os sinos dobram, eles dobram por ti”.

A dimensão humana no contexto hospitalar:

desafios à ação do psicólogo clínico

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Nas palavras de Gilberto Safra (2004), uma das

necessidades fundamentais do homem no

estabelecimento do seu ethos – morada – é a de ser

recebido e acolhido pela comunidade em que nasce. O

estar-no-mundo coloca-o diante de questões

fundamentais sobre o seu existir-com-os-outros,

levando-o, muitas vezes, a sentimentos de angústia

decorrentes de situações de exclusão e

desenraizamento étnico7, estético8 e ético9. É

fundamental para a clínica perceber esses fenômenos

como impossibilidade do ser humano habitar

eticamente o mundo.

Enquanto ser em devir, em relação às experiências

– boas ou más – que acontecem nessa caminhada, é a

precariedade que revela a necessidade de um lugar para

repouso, um lugar onde se possa estar. A experiência

de estar lançado ao mundo marca a necessidade desse

lugar, tão necessário à condição humana (Safra, 2006).

O conceito de placement, proposto por Winnicott,

como modalidade de intervenção clínica, coloca a ação

do psicólogo voltada à necessidade de se oferecer um

“lugar”, sustentado por um outro, em que o ser humano

poderá destinar-se a um horizonte possível. Através do

placement o paciente tem a possibilidade de colocar-se

em uma situação que possa responder as suas reais

necessidades em seu tratamento (Safra, 2006).

Compreendendo que o adoecimento provoca fraturas

no ethos do paciente e a hospitalização, enquanto

possibilidade de restabelecimento da saúde,

paradoxalmente parece não ofertar um lugar em que o

indivíduo sinta-se seguro, o cuidado voltado a este

paciente será, nesta perspectiva, o de oferecer um ethos

em que seja possível, apesar da doença, dar sentido a

sua vida.

Estar isolado é estar privado da capacidade de agir

e, na medida em que a ação e o discurso necessitam da

circunvizinhança dos outros (Arendt, 2005),

compartilhar é tornar uma experiência vivida em

humana.

Complementando, Critelli (1996) aponta que a

morada do homem no real é o seu modo de ser-nomundo.

Tanto o mundo quanto o homem, são,

simultaneamente, o fundamento e o resultado de um

movimento de realização do real e, para que possa ser

firmada a sua presença no mundo vivido, a história

humana é dada somente a partir desta circularidade

interminável.

Cuidar da vida é compreender o homem como serpara-

a-morte, enxergá-lo na sua singularidade e nos

seus diferentes modos de habitar o real. O real de um

mundo percebido a partir das ansiedades e angústias

7 Pela perda da conexão com os elementos sensoriais e culturais que

remetem o humano a memória de sua origem (Safra, 2004).

8 Acontece devido ao fato de as organizações estéticas atuais,

decorrentes da estética das máquinas ou do mundo digital, possuem

pouca relação com a organização corporal humana (Safra, 2004).

9 Surge em um mundo que nem sempre é regido pelo respeito e

responsabilidade pelo humano (Safra, 2004).

em que o não-ser, denunciado pelo

adoecimento, se manifesta e põe este homem

em contato com a sua finitude.

A nossa experiência clínica com pacientes

oncológicos e que se submetem aos

procedimentos invasivos em seu tratamento

mostra que o registro de “sentença de morte”

que acompanha essa doença, não raro, causa

sentimento tão profundo de angústia que parece

não ter contornos, chegando mesmo, a tornar-se

agonia e desalojamento tanto nos pacientes

quanto em seus familiares. O registro que fica

não é do medo de “simplesmente morrer”, mas

sim o de “morrer de câncer”, dado o seu estigma

e representações negativas construídas ao longo

dos séculos.

Intervir diante do “terror” causado pelo

adoecimento e sobrepondo-se a isso a vivência

da hospitalização pensamos sobre a palavra

clínica que, advinda do grego klinike, significa

“o que se faz junto ao leito”. Entendendo que,

como modalidade de intervenção, “estar junto”

é a possibilidade de ofertar um lugar de

acolhimento para o paciente, na medida em que,

como dito por Safra (2006), o lar, enquanto

necessário à condição humana, favorece o “ir”

na descoberta e o “voltar” para um lugar seguro,

mesmo que seja invisível aos olhos.

As aproximações com a fenomenologia

existencial de Heidegger nos permitem refletir

sobre uma clínica preocupada com a pessoa que

sofre, principalmente no contexto hospitalar,

onde a doença – e não o doente – e o

restabelecimento da vida a qualquer custo,

muitas vezes é prioridade. A possibilidade de

dar novos sentidos à vida a partir do confronto

com a sua condição de ser-para-a-morte nos

parece fundamental para uma clínica

preocupada com a ética do humano.

Toda a equipe de saúde, comprometida com

o cuidado do paciente deve estar atenta a este

tipo de reflexão, para que o tratamento não seja

exclusivamente voltado para a cura, mas para a

valorização do ser do homem, da sua dignidade.

Temos consciência que estas reflexões,

tratadas aqui a partir de um ponto de vista

teórico, merecem ser ampliadas e mesmo

trabalhadas em pesquisas futuras; porém, elas

sinalizam a importância das diferentes

possibilidades da clínica poder olhar e cuidar do

homem que sofre. Neste contexto, apesar de o

“cuidado” ser comumente entendido como o

sucesso de um tratamento ou a busca pela

manutenção da vida, deve ser percebido como a

oferta de um “lugar” em que as questões

fundamentais vividas pelo paciente grave

encontrem ressonâncias porque podem ser

compartilhadas.

Barbosa, L. N. F.; Francisco, A. L. & Efken, K. H. Adoecimento: O Ser-para-a-Morte e o Sentido da Vida.

Pesquisas e Práticas Psicossociais, 2(1), São João del-Rei, Mar./Ag., 2007.

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Recebido: 05/04/2007

Avaliado: 29/05/2007

Versão final: 17/06/2007

Aceito: 22/06/2007

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