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O CASO VERA1: ANÁLISE DE UMA EXPERIÊNCIA FRACASSADA

Georges Daniel Janja Bloc Boris2

Resumo

O texto visa a demonstrar como a falta de conhecimento e de vivência dos fundamentos do enfoque fenomenológico-existencial dificulta ou mesmo impede o sucesso na prática do psicoterapeuta iniciante. De início, é feita uma descrição e uma análise de relatos de sessões de vários processos psicoterápicos de uma cliente, acompanhada por estagiários por nós supervisionados. Em seguida, dilemas e conflitos do psicoterapeuta iniciante são discutidos, propondo algumas sugestões para dar conta dessa situação. Finalmente, são apresentados os te­mas, as origens e o significado da orientação fenomenológico-existencial, apontando algumas de suas contribuições e conseqüências à prática psicoterápica.

Palavras-chave: psicoterapia; supervisão; estudo de caso; psicoterapia fenomenológico-existencial.



Abstract



This text intends to demonstrate the effects of a lack of knowledge and experience in relation to the fundamental view that must base the existential-phenomenological analysis in the practice of fresh psychotherapists. At first, it builds an analytical description of meeting reports, concern­ing on a client's several psychotherapical processes, with trainees, supervised by the article author. Next, problems and conflicts suffered by fresh psychotherapists are dis­cussed, when the author makes some suggestions trying to save the situation. Finally, there is a search of origin, themes and meanings of an existential-phenomenological conduction, pointing out some of its contributions and consequen­ces for the psychotherapical practice.

Key words: psychotherapy; supervision; case study; existential-phenomenological psychotherapy.





INTRODUÇÃO



À Gercy, que muito me ensinou sobre o difícil e desafiante acompanhamento dos encontros entre clientes e psicoterapeutas iniciantes.





Meu objetivo é demonstrar, a partir da ilustração de um caso clínico, acompanhado por mim através da supervisão de processos psicoterápicos realizados por meus ex-estagiários, como o desconhecimento e a ausência de vivência do enfoque fenomenológico-existencial dificulta ou mesmo impede a boa condução da prática do psicoterapeuta iniciante.

O que apresentarei aqui é uma descrição e uma análise de um período de mais de três anos, entre 1989 e 1992, mas Vera continuou a ser atendida até há razoavelmente pouco tempo, por vários alunos do último ano, no NúcIeo de Serviços de Psicologia Aplicada (NUSPA), clínica-escola da Universidade de Fortaleza, onde sou professor e supervisor de estágio em gestalt-terapia.

Num segundo momento, discuto os dilemas e conflitos do psicoterapeuta iniciante, propondo algumas sugestões para melhor elaborá-los.

Ao final, aponto algumas contribuições e conseqüências à prática da psicoterapia, a partir das origens, dos temas e do significado da perspectiva fenomenológico-existencial.



A SAGA DE VERA



Vera procurou os serviços do NUSPA aos 19 anos incompletos. Não há indicações claras da renda sócio-econômica de sua família, mas tudo leva a crer que pertença à classe baixa.



Momento 1 (março a agosto de 1989)

As primeiras notícias que tive de Vera dizem respeito ao período em que se submeteu a psicodiagnóstico, realizado por uma estagiária orientada por outra profissional, tendo sido encaminhada a psicoterapia urgente, mas foi desligada por faltas sem justificativa.

Sua história de vida descreve um pai alcoólatra e uma mãe desinteressada da questão, o que lhe provocava raiva. Culpava o pai por sua "depressão", usando o passado para justificar seu presente. Tomava medicação para ansiedade e consultava periodicamente um psiquiatra quando "deprimida". Viera de uma cidade do sertão centraI do Ceará, morando atualmente com os pais em Fortaleza, e dizia sentir-se mal quando voltava à cidade natal. Afirmava querer trabalhar e sair de casa, mas concluíra o 2º grau e não fazia nada.

Os instrumentos utilizados no psicodiagnóstico foram testes de personalidade (MMPI, TAT, Machover), história-de-vida e entrevistas, revelando como síntese diagnóstica: problemas de identidade, forte tendência a se preocupar com doenças e com o que pensam dela; alto isolamento com sentimento básico de fracasso permanente, impedindo-a de construir sua vida e gerando constante Iamentação. Apresentava idéias confusas, mas, quando em contato, seu pensamento e linguagem eram organizados. Freqüentemente, seu comportamento era ausente e evasivo, desligando-se da realidade, com apego às próprias idéias.



Momento 2 (agosto a novembro de 1989)

Vera foi atendida por estagiária sob minha supervisão, comparecendo a 13 sessões, mas com quatro faltas. (Quando oportunas, minhas observações, tanto sobre a cliente quanto sobre a/o psicoterapeuta, encontrar-se-ão em itálicos e entre parênteses).

. 1ª sessão: Vera apresentou-se desconfiada e agitada, comparando a psicoterapeuta com a estagiária anterior.

. 2ª sessão: Vera mostrou-se mais calma, mas manifestou sentimento de ódio por si mesma, além de sentir-se improdutiva, ignorante e inferior. (Retroflexão). Afirma ter ódio do pai por seu alcoolismo e por suas atitudes grosseiras. Odeia a mãe por sua acomodação. Queixa-se de sua pobreza e do conseqüente impedimento de fazer muitas coisas. Fala muito e “corta” as interferências da psicoterapeuta.

. 3ª sessão: Vera diz estar mais tranqüila porque pôde estar na casa da avó, já que, na sua casa, tem que cuidar dos afazeres domésticos. \/olta a se queixar de ser pobre, acreditando que não teria problemas se tivesse dinheiro. Lamenta-se, também, do pai, que poderia ser mais do que é, se soubesse economizar. Ressente-se da ausência de carinho por parte dele. Demonstra desagrado, “cortando”, novamente, as falas da estagiária e dizendo não querer ouvir para não ser "mexida". Afirma desejar que conheçam apenas suas manifestações externas, mas não seu interior. (Podemos associar esta afirmação da cliente à sua vergonha de sua cidade natal, seu "interior”). Chora. Diz que se isola por ter vergonha de sua pobreza, de sua inferioridade e de sua homossexualidade. Deseja contar um segredo, mas tem pouca confiança, pois ninguém acreditaria, achando que se tratava de fantasia.

. 4ª sessão: Vera falta (após revelar o desejo de contar um segredo).

. 5ª sessão: Vera chega mais cedo, excitada, tensa e inquieta. Revela sentir amor por sua vizinha, um "amor louco”, sufocante e angustiante, mas não tem coragem de se aproximar e ser correspondida, mantendo-se a meia distância. Fantasia sobre os sentimentos da vizinha: acredita que ela a deseja e que a ama. Diz que não deseja apenas amizade. Chora, inquieta, acusando a psicoterapeuta de não acreditar que a garota goste dela. Refere-se a um primo homossexual que confirma suas impressões sobre a vizinha. Diz ter a expectativa de que a estagiária "tirasse” esse sentimento de dentro dela, concluindo que a psicoterapia não está adiantando, pois o seu sentimento pela garota está aumentando. Faz uma comparação inferiorizante entre si mesma e a garota, que é bonita e rica, enquanto ela, Vera, não é nada. Há uma queda em sua auto-estima, que interfere emocionalmente em seus objetivos intelectuais, gerando confusão. A psicoterapeuta reflete que se sente julgada. (A estagiária assume para si as atribuições onipotentes da cliente). Vera tenta ultrapassar o tempo da sessão com perguntas ou temas importantes.

. 6ª sessão: Vera está mais calma. Diz que observou a garota à distância e que acredita que a mesma busca vê-la. Valoriza a família da vizinha, que é unida e estruturada, como um modelo idealizado. Relata que namorou um homem: "senti tudo o que uma mulher pode sentir". Diz ter sentido prazer e, ao mesmo tempo, uma sensação como se o rapaz fosse um "monstro" e quisesse lhe fazer mal. Teme deixar de ser homossexual, desejando ser alta, masculina, atraente para outras mulheres por seu porte físico, pois se sente atraída por mulheres assim, mas sente-se ridícula. Teme, também, que um homem "faça" consigo o que seu pai "fez" com sua mãe, mas deixa vago o significado deste "fazer", revelando ambigüidade sexual. Manifesta desgosto e irritação com sua diferença, sentindo raiva das pessoas "normais". Afirma estar atraída pela psicoterapeuta devido a seus sentimentos pela garota. Julga as pessoas por conta de sua autocensura. Tenta, novamente, prolongar a sessão, tratando de seu medo de se aproximar da garota por já ter, anteriormente, levado um "baita fora".

. 7ª sessão: Vera chega com expressão abatida e cansada. Diz estar triste, "deprimida" e com vontade de chorar. Afirma estar grata à estagiária por tê-la ajudado com relação à sua homossexualidade, aceitando-se mais. Por outro lado, destaca, em tom de menosprezo, que a psicoterapeuta ainda era apenas uma estagiária. Diz que tudo é muito difícil e complicado, pois a estagiária "não põe o dedo nos seus pontos 'x', duvidando e indagando se deve continuar a psicoterapia, pois tem a expectativa de ser "tirada" da "depressão". Diante da cobrança, a psicoterapeuta sente-se mal, "errada" e inadequada. Há um silêncio de cobrança. Vera inicia a falar sobre o "fora", interrompendo para indagar sobre o tempo de sessão que lhe resta. Cobra da estagiária o uso de técnicas, ao que esta responde que a cliente sempre chega tensa, praticamente não se sentando: "é difícil trabalhar com você". (Retaliação e acusações mútuas devidas ao excesso de expectativas e de dificuldade de aceitar e de dar continência aos sentimentos negativos da cliente e em relação a ela). Vera pede que a psicoterapeuta insista com ela para fazer as técnicas. A estagiária sugere que a cliente escreva um "auto-retrato" a partir das palavras "eu sou..." (atendimento das expectativas e das exigências de Vera): todas as características apresentadas são negativas. A cliente anuncia que, na sessão seguinte, falaria do "fora".

. 8ª sessão: Vera chega ansiosa para falar de si mesma. Diz que se acha boba, pois gosta de falar de si, mas é mais fácil quando não olha para o outro. Quando se aborrece, deseja agredir, mas nunca teve coragem de contestar nada, aceitando mais as opiniões alheias do que as próprias. Afirma que a mãe sempre a assistiu, estando sempre presente. Diante do questionamento da psicoterapeuta, a cliente desconfia que a mãe nunca esteve emocionalmente ao seu lado, pois dá muita atenção ao irmão mais velho, que faz faculdade. A estagiária questiona seu desejo de estudar, indagando se não seria uma forma de chamar a atenção da mãe. Vera acredita que é um "peso" para os pais. Diz que já pensou em suicídio. O pai sempre foi ausente, e, até os seus 14 anos, nunca conversou com ele. Não vê graça no relacionamento com ele e acha que o odeia, mas trata-o bem para que não beba. O pai bebia sempre, mas não lhe batia. Era exigente e grosseiro, mas via-o como frágil e inseguro como ela. Apesar do pai demonstrar que gostava dela, odeia-o pelo que passou. Quando fala de seus problemas a alguém, depois, rejeita a pessoa. (Isto não se à psicoterapeuta? Transferência?) Faz perguntas sobre a estagiária: o que faz, o que gosta, se atende em outros locais, quando terminará a faculdade.

. 9ª sessão: Vera indaga se os atendimentos continuariam no semestre seguinte, pois não deseja passar por uma terceira psicoterapeuta. A estagiária responde que provavelmente não, pois passaria a fazer estágio na área organizacional (pode-se perguntar como fica o compromisso com a cliente, sendo este menor do que com o estágio, a instituição universitária e com os próprios interesses da aluna), passando a expor suas impressões sobre Vera. A cliente afirma que a psicoterapeuta é apenas uma estagiária. A psicoterapeuta diz não compreendê-la e preocupar-se com ela: “não estou conseguindo ajudá-la''. (Postura personalista que visa a “seduzir” Vera através de uma atitude humilde, escamoteando sua frustração por não se sentir eficiente e capaz de “ajudar"). A cliente confirma a ajuda da estagiária, que se queixa de não estar se sentindo bem, pois Vera não lhe dá espaço para falar: “várias vezes, achei-a insuportável, mas não quero deixar de atendê-la”. (Atitude ambígua e contra-transferencial, através de um desabafo emocional que revela a idéia da psicoterapeuta de que o uso do espaço e o sucesso do processo psicoterápico competem e dependem dela). A estagiária reflete que a “forma cansativa” da cliente poderia ocorrer junto a outras pessoas. (A psicoterapeuta está cansada de Vera). A cliente diz que "tranca-se" mais a cada dia, desejando que soubessem de suas dificuldades e viessem ajudá-la. (Vera pede ajuda à estagiária). A psicoterapeuta questiona a possibilidade de aproximação alheia, pois a cliente não demonstra nenhum sentimento, revelando apatia e padronização emocional. Sugere que Vera diminua suas expectativas, sua ansiedade e sua tensão, favorecendo sua fluidez e seu sucesso. (Fórmula mágica pouco prática, pois promete muito e não revela como aplicá-la).

. 1O sessão: Vera acha que tem raiva da garota, pois pensa que a mesma crê que ela é “cafajeste”, pois “mexeu” com seus sentimentos e não “assumiu”. (Sentimentos transferenciais aplicáveis também à estagiária). A psicoterapeuta reflete sobre os sentimentos de dúvida, punição e recriminação da cliente pelo que sente, vendo-os apenas por sua própria perspectiva, ficando desagradada com os questionamentos da estagiária. Vera diz que tentou aproximar-se e não recebeu atenção, tecendo fantasias de acontecer algo (pouco definido e ambíguo) entre elas: "foi tão lindo, uma querendo agradar a outra através de gestos!" (Sentimentos transferenciais: a cliente fala de sua relação com a garota ou com a psicoterapeuta?).

. 11ª e 12ª sessões: Vera falta sem justificar.

. 13ª sessão: Vera falta, sendo desligada. (A cliente abandonou a psicoterapia antes de ser abandonada?)



Momento 3 (março a julho de 1990)

Vera continua a psicoterapia com uma nova estagiária, também orientada por mim, realizando 11 sessões, com apenas uma falta.

O quadro evolutivo assim descreve a cliente: atendida por duas estagiárias do NUSPA, já fez tratamento com psiquiatra. Queixa-se de muita "depressão", falta de vontade de viver e angústia: "não gosto de nada". Teve pensamentos suicidas, mas sem tentativas. Sempre foi “problemática”. O pai é alcoólatra e sua infância foi ruim porque moravam no interior e via o pai ser vítima do deboche dos vizinhos por causa de sua bebedeira. Envergonha-se, "deprime-se" e "fecha-se", culpando o pai por ser assim. Tem bom relacionamento e apego à mãe. Acredita ser homossexual porque sente atração por meninas. Está apaixonada por uma garota de sua rua, que é "tudo o que gostaria de ser": bonita, rica e com pais maravilhosos. Acha que se sua família fosse rica, ela seria diferente. Concluiu o 2º grau e estuda para concurso da Escola Técnica Federal. Composição familiar: pai - mãe - irmão - Vera - irmão - irmã.

. 1ª sessão: Vera diz temer que a psicoterapeuta não desse muita atenção a seu caso e que esquecesse o que ela dizia, pelo fato de ter outros clientes. A impressão da estagiária é de que a cliente é muito carente, querendo ser ouvida e controlar quem a escuta. Apresenta resolução inadequada do "Édipo": como não pode desejar seu pai, identifica-se com ele. (A psicoterapeuta parece ter conhecimentos sobre psicanálise. Pode-se perguntar sobre seu domínio do enfoque fenomenoIógico-existencial e da gestalt-terapia). Diz-se homossexual, mas nunca teve experiência.

. 2ª sessão: Vera diz ter estado extremamente "deprimida", tendo ficado perambulando pelas ruas, sem rumo e sem se concentrar em nada. Só fala sobre isso com a mãe, mas esta não a entende e não sabe como ajudá-la. Não esquece a garota, mas não quer se aproximar por causa da família e dos outros, pois crê ser vista com maus olhos. A estagiária questiona a crença da cliente, mas Vera diz que se baseia em gestos. A psicoterapeuta levanta a possibilidade de haver diferença entre sua percepção e a realidade. A cliente pede-lhe "respostas prontas". A estagiária devolve-lhe a questão, destacando a importância de seu desejo de se ajudar. Vera diz ter sentimento de inferioridade por ser filha de seu pai. A psicoterapeuta questiona a relação da cliente com o pai, comparando-a com sua relação com os rapazes. Vera conta ter tido um relacionamento sem importância com um rapaz, resistindo a se aprofundar na questão, pois ficou confusa. Afirma que prioriza os estudos, pois deixaria a paixão de lado, mas não faz muito pelos estudos. A estagiária sugere que a cliente busque um "cursinho" para ter contato com outras pessoas. (ConseIho talvez útil e interessante, mas que impede que Vera encontre, por si mesma e a partir de sua própria disponibilidade, a sua melhor escolha).

. 3ª sessão: Vera chega animada, pois conseguiu o "cursinho" com um professor do colégio e começaria no dia seguinte. Conseqüentemente, sente-se melhor da "depressão" (o que reforça nossa desconfiança acerca deste diagnóstico, apesar de endossado por todas as estagiárias que atenderam a cliente). Diz que, desde que concluiu o 2º grau, sentiu-se muito só e "deprimida". Sobre sua vida sexual, afirma sentir necessidade de um amigo, de um parceiro sexual, mas não teve nenhum contato: com os homens, teve medo da gravidez; com as mulheres, ficou apenas na atração. Vê os homens como superiores fisicamente, desejando parecer como eles (atitude "como se") e, ao mesmo tempo, ser por eles protegida. Apesar do físico da garota, não se sente fisicamente inferior, mas, em outros aspectos, deseja ser igual a ela. (Mistificação).

. 4ª sessão: Vera falta, justificando.

. 5ª sessão: Vera diz estar “deprimida”, "entalada" (engasgada), com dor de garganta e com vontade de chorar. Preocupa-se com o término da psicoterapia, desejando saber teoricamente mais sobre a "depressão" ("checagem" dos conhecimentos da estagiária), cobrando que falasse mais. A psicoterapeuta destaca a indisposição da cliente de falar de si mesma, que argumenta que anseia pela solução de seus problemas. A estagiária afirma a necessidade de Vera aceitar-se, observando que a cliente fala de seus problemas como "isso", afastando-se de si mesma.

. 6ª sessão: Vera chega ansiosa e "deprimida", mas diz que tem aprendido a lidar melhor com seus sentimentos, preocupando-se menos com suas causas. Lembra já ter tido sentimentos e sensações semelhantes anteriormente, ficando tranqüila e relaxada, com menos dores de cabeça e de estômago, concluindo que está tendo progressos na psicoterapia. Questiona sua homossexualidade, pois se sente incomodada por não conseguir aproximar-se da garota. Contou suas dúvidas à sua mãe, que as justificou com o fato de ela não ter tido relações sexuais com homens. Acha que foi compreendida, mas que a mãe é passiva (“faz tudo pelo pai") e os pais "fracos", tendo que "batalhar” pelo que deseja, sem esperar por eles.

. 7ª sessão: Vera trata de suas dificuldades de relacionamento: é difícil fazer amizades, pois tem medo de falar, não sabendo o que vão pensar dela. Conheceu um rapaz, filho de uma amiga de sua mãe, que achou muito simpático e simples, diferente dos outros homens, não sendo uma figura “forte", que gerasse medo, desejando conhecê-lo. Teve o incentivo da avó, que o achou um bom rapaz. Convidou-a a ir à praia, mas ele teve que estudar com o irmão: "não vou mais atrás!" - concluiu.

. 8ª sessão: Vera diz que não mais sentiu "depressão", estando tranqüila. Conta estar triste porque a garota mudou-se. Só pensa nela, tendo muito desejo de ter relações sexuais com a mesma, mas tem dúvida se iria gostar, pois, anatomicamente, faltaria algo. Sente vontade de "fazer" com homem, mas teme a gravidez. A estagiária propõe a realização do teste de personalidade H.T.P. (Por que? Descrença em sua capacidade de compreendê-la sem um recurso técnico confirmador? Evitação de contato com conteúdos emocionais difíceis da cliente?). Sobre a casa, Vera diz que gostaria de passar as férias, mas não de morar, porque era no campo. Gostaria que a família morasse lá. A casa é pequena, mas comenta que é grande para seu estilo, pois gosta de desenhar casas distantes. A psicoterapeuta "interpreta" o desejo da cliente de ter os pais felizes, mas distantes. Vera olha para a janela, diz que sente vontade de chorar e que, às vezes, sente-se assim, sem saber o porquê. A estagiária reflete a dificuldade da cliente estar com a família, em casa. Vera diz, chorando, que gostaria de morar bem longe deles, de usar outras roupas, de ter outro nome e outra personalidade, de ser diferente, de amar um homem e de ter um filho. Levanta-se, olha à janela e volta, dizendo não saber porque sente desejo por "ela". A psicoterapeuta reflete: "será que ela não é como você gostaria de ser, para conseguir um homem e ter um filho?" ("lnterpretação" disfarçada e mal colocada, pois parece induzir a cliente a adotar um comportamento sexual mais adequado). Vera fica em silêncio.

. 9ª sessão: Vera diz que sente vontade de chorar sempre que vem ao bairro onde está a Universidade, pois a garota mora perto. Não consegue esquecê-la. Gostaria de procurá-la e dizer-lhe tudo. Indaga se a estagiária acha essa atitude certa ou errada, mas a psicoterapeuta recusa-se a assumir esse papel. A cliente parece não gostar, dizendo que pensa que a psicoterapeuta acha um "saco" ficar escutando-a e que deveria dar-lhe mais apoio, pois se sente "fraca". A estagiária reflete que Vera parece estar tentando "forçá-la" a falar, o que revela que tem força. A cliente nega, dizendo que deseja apenas ser compreendida. Indaga sobre a importância do desenho, ao que a psicoterapeuta responde que ele permite revelar sua vida. (Destaque-se a atribuição de grande poder a um recurso técnico, em detrimento da potencialidade de sua atitude compreensiva e do desejo de autocompreensão de Vera). A cliente diz preocupar-se que a estagiária tenha acesso às suas "coisas". A psicoterapeuta argumenta (resposta tranqüilizadora da angústia da cliente) que a validade do desenho para o crescimento de Vera depende da expressão do que ela sente, propondo a continuação do teste. A cliente concorda, mas com pouca receptividade, resistindo a explorar os seus detalhes.

. 10ª e 11ª sessões: sessões não descritas, com interrupção do período letivo e da psicoterapia.



Momento 4 (maio a junho de 1990)

Vera realiza orientação profissional, de forma incompleta, com outra estagiária, num total de nove sessões, com três faltas. Não tive acesso a este material.



Momento 5 (agosto a novembro de 1990)

Vera retoma o processo psicoterápico com a mesma psicoterapeuta anterior, realizando 21 sessões, com apenas uma falta. Não há detalhes das sessões, mas uma descrição geral: houve um deslocamento do tema principal da indefinição sexual para sua dificuldade de relacionamento com as pessoas e com a família. Por exemplo: tentou se aproximar de alguém no ônibus, para conversar, não sendo bem recebida. Sentiu-se "deprimida" e ansiosa, menosprezando-se e atribuindo sua incapacidade de manter contato a seus rótulos e preconceitos (pouca instrução, pobreza etc.) Revela muita ambição (?): faz "cursinho" de italiano e estuda para o vestibular, mas se angustia por ver nos estudos o único caminho para resolver seus problemas. Sente-se em conflito porque não trabalha e a família valoriza muito os estudos, obrigando-se a conseguir "status" diante dos outros, através da formatura e ganhando dinheiro. Valoriza, sendo vulnerável e sensível à opinião alheia, "fechando-se" ou tendo excesso de expectativa no contato com os outros. Tem dificuldade de relaxar e interrompe o contato consigo mesma através de autoconsciência, não percebendo as possibilidades e os limites da situação, agindo de forma inadequada. Por exemplo: evita contato com pessoas conhecidas que não vê há tempos. Deu mais detalhes sobre a família: tem dificuldade de aceitar o pai por ser um "simples" funcionário público, alcoólatra e "fraco"; a mãe é ingênua; os familiares não lhe dão segurança, por serem pessoas medrosas, que não arriscam; apenas o irmão mais velho tem "futuro", pois faz faculdade e trabalha, mas é "grosso" e insensível. Durante as sessões, a estagiária refletiu acerca da postura de julgamento e de preconceito de Vera e sobre os sentimentos implícitos em suas relações. Por exemplo: sente raiva e não aceita os familiares, mas culpa-se por falar deles, responsabilizando-se por fazer algo por eles, principalmente o pai, que precisa de ajuda. A psicoterapeuta avalia que Vera apresenta maior contato com suas questões e dificuldades, percebendo melhor a si mesma e aos outros. Já experiencia estar com os outros sem cobrar atenção e exclusividade plenas. Quando a cliente manifestava insatisfação por não se achar compreendida, exigindo respostas prontas e a certeza de ser escutada e amada, a estagiária alternava frustração e apoio, destacando suas tentativas de controle e de entrega. Quanto à sua vida afetiva e sexual (não iniciada), a vivencia em nível de fantasia, sem contato real. Ao final, a psicoterapeuta prescreve que Vera busque aprender a ter contatos superficiais para poder vir a desenvolver contatos mais profundos. (Apesar dos senões, este processo psicoterápico parece ter sido proveitoso para a cliente, talvez, entre outros motivos, devido à sua maior continuidade e disponibilidade da estagiária).



Momento 6 (março a junho de 1991)

Vera experimenta a psicoterapia comportamental, comparecendo a 12 sessões, mas faltando a seis. Não há quase nenhum registro das sessões, apenas que a queixa permanece a mesma e que a cliente não deseja contar seu "problema" pela quinta vez, num processo sem novidades.



Momento 7 (outubro de 1991)

Vera tenta a psicoterapia psicanalítica, mas não se adapta.

. 1ª sessão: Vera falta, justificando.

. 2ª sessão: Vera manifesta desejo de ser atendida por alunos do penúltimo semestre, num processo psicoterápico mais longo e contínuo, sem mudanças. Desiste.



Momento 8 (março a junho do 1992)

Vera volta à psicoterapia gestáltica, com estagiária sob minha orientação, realizando 13 sessões, com quatro faltas.

. 1ª sessão: Vera mostra-se tímida e desconfiada, de cabeça baixa, esfregando freqüentemente as mãos. Queixa-se de ser desagradável trocar sempre de psicoterapeuta, ter de repetir tudo e várias estagiárias ficarem sabendo a seu respeito. Diz ter vergonha de falar sobre sua homossexualidade quando troca de psicoterapeuta, mas gosta de vir ao NUSPA, que é agradável e quieto, apesar de ser longe de sua casa. Sente-se num dilema: está inscrita na clínica-escola da Universidade Federal do Ceará, mas prefere o NUSPA porque não há pagamento. Reluta em aceitar os dias e horários propostos pela estagiária, que cobra uma decisão da cliente entre um dos serviços, pois os motivos alegados não eram suficientes para impedir sua escolha. Em seu relatório, a psicoterapeuta se auto-avalia: Vera é sua primeira cliente, sentindo-se preocupada, insegura, sozinha, temendo o desconhecido; aos poucos, sentiu maior confiança e tranqüilidade.

. 2ª sessão: Vera parece desconcertada e tímida, remexendo constantemente na cadeira. Continua indecisa quanto à psicoterapia, mas não quer perder os serviços do NUSPA porque não tem que pagar. A estagiária propõe que a cliente avalie os possíveis benefícios dos processos anteriores, ao que Vera responde: "Ave Maria, já melhorei bastante!" Relata que, no semestre anterior, passou no vestibular de administração da Universidade Federal do Ceará, estando no primeiro semestre, mas não está muito bem, pois se apaixonou por uma garota alta, bonita e rica, tendo sempre se sentido atraída por esses tipos "fortes" e "masculinizados". Fala cabisbaixa, esfregando as mãos, estalando os dedos, curvada para frente, constrangida e angustiada. A psicoterapeuta destaca a dificuldade da cliente falar no assunto. Diz ser incômodo ter que falar novamente, não desejando falar mais, tratando de assuntos corriqueiros, com interrupções. Confirma a psicoterapia no NUSPA, aceitando sem tanta dificuldade os dias e horários propostos pela estagiária. Em seu relatório, a psicoterapeuta se auto-avalia: Vera é uma pessoa confusa, que lhe provoca incômodo, não sabendo se isto se trata de uma dificuldade sua. (Destaque-se que a estagiária não fazia sua psicoterapia pessoal).

. 3ª sessão: Vera chega muito cedo, tensa, com medo de perder a hora, tendo se recusado a sair com a mãe. A estagiária indaga-lhe se desejou fugir. A cliente diz que a semana ­foi terrível e que não poderia deixar de vir, fazendo um discurso pouco claro sobre afazeres domésticos. A psicoterapeuta pergunta-lhe sobre sua rotina e seus relacionamentos familiares. Vera diz que ajuda a mãe quando pode e que ela assume todos os afazeres sozinha, pois os irmãos não cooperam: o mais novo é meio esquisito e "caladão"; o mais velho é mais amigo e namora com uma mulher que a cliente não acha bonita e por quem não sente atração; não tem bom relacionamento com a irmã, pois não se gostam e pouco se falam, sendo totalmente diferentes. Com a mãe, a aproximação é relativa, não lhe confiando suas "coisas". O pai é grosseiro e não gosta dele. Gosta um pouco da avó, indo à sua casa, mas é pobre e velha. Não gosta da sua rua e da sua casa, detestando os vizinhos: são "grosseiros, sem cultura, pobres". Sente vergonha deles, não ficando na calçada, mas, às vezes, acompanha os movimentos pela janela. A estagiária reflete: "seus preconceitos não a impedem de ter um melhor relacionamento com a família e os outros? Não os acha ameaçadores e se afasta por temê-los? Seus julgamentos não são uma reação à possibilidade de ser julgada, atribuindo aos outros parte de suas angústias e frustrações?" (Projeção). A cliente diz que a família não sabe que ela faz psicoterapia há mais de dois anos. Se soubessem, ficariam envergonhados por Vera contar sua vida a outros, o que não é necessário, crendo poder ajudá-la melhor. Talvez se preocupassem de que ela estivesse “Iouca" ou com problema grave, pois a família é conservadora e não entende nada. A psicoterapeuta reflete acerca da rejeição da cliente por seus próprios valores e pelos seus familiares, prejudicando sua identificação, devido à sua baixa auto-estima, seu desejo de não estabelecer elos com ninguém, sua atitude da autodepreciação e desprezo pelos outros. ("Reflexão" interpretativa que visa a induzir a cliente a agir numa determinada direção).

. 4ª sessão: a estagiária atrasa-se. (Logo veremos as repercussões deste "descuido"). Vera diz que temeu que a psicoterapeuta não viesse, pois tinha muito que lhe falar. Sofreu uma decepção com a garota da faculdade. Relata isso com interrupções sobre outros assuntos, fato destacado pela estagiária. A cliente confessa que fazia o mesmo com as outras psicoterapeutas. A estagiária reflete sobre a dificuldade de Vera entrar em contato com seus sentimentos e desejos, sua evitação de escutar e sua censura. A cliente reconhece que precisa de ajuda e que não é capaz de se conduzir sozinha, crendo ser uma pessoa simples, frustrada porque ninguém a procura para se relacionar, o que muito gostaria. Deseja ser compreendida, ser rica, ter poder, ser alta e vestir-se bem. Faz curso de administração porque tem vontade de dominar, coordenar, administrar, cobrar, se exibir e ser o que quiser. A psicoterapeuta indaga: "o que a impede?" Vera pede que a estagiária se cale: "ai, ai, espera! Deixa eu falar!" Acusa-a de não compreendê-la por ser pobre. A estagiária avalia que a cliente apieda-se de si mesma, centralizando-se nos relacionamentos com os outros, omitindo-se, não confrontando (Vera acaba de confrontá-la), acomodando-se e recusando-se a fazer esforços. A psicoterapeuta se auto-avalia, reconhecendo sua dificuldade de lidar com a "estupidez" da cliente, ficando "cheia" de estar com ela, irritada, exaurida de ouvir suas prepotências. (Reação contra-transferencial reveladora da dificuldade de dar continência às atitudes da cliente e da ausência de um trabalho psicoterápico com as próprias emoções). Vera reage, tentando controlar a estagiária, queixando-se e julgando-a por fazer anotações. A psicoterapeuta afirma que anotaria quando desejasse e fosse conveniente, oferecendo seus papéis para que a cliente lesse. (Atitude de enfrentamento pessoal, incompatível com uma adequada postura psicoterápica). Vera diz que não é necessário e que, nestes momentos, percebia a estagiária como uma estudante, que confirma que, de fato, é uma estudante e sua necessidade de anotar. (Por quê esta necessidade tão premente? Evitação de contato? Autoproteção?) A cliente comenta, no término da sessão: "pôxa, chegamos ao final e não falei nada do que tinha planejado! Você vai atender outra pessoa?" (De fato, a sessão pouco foi ocupada com as questões de Vera, rnas com seu "embate" confrontativo e desperdiçador com a psicoterapeuta).

. 5ª sessão: Vera chega angustiada e temerosa de que a estagiária não viesse, pois tinha muito que contar e não queria deixar passar. A psicoterapeuta pede-lhe que descreva seu temor. A cliente tapa a boca, com o rosto enrubescido, os olhos baixos e o tronco curvado, revelando desconforto, constrangimento e peso. A estagiária sugere um relaxamento com respiração lenta e profunda e em posição mais confortável. Vera relembra a infância, o local em que morava no interior e a experiência de minutos de namorico com um garoto, incentivado pelas famílias. Afirma que gostava do lugar, e que, mais tarde, mudou-se para Fortaleza. O pai, alcoólatra, arrumava confusão, era sujo, de má aparência, pobre e ridículo. Até os seus 14 anos, sentiu-o ausente, não lembrando de ter conversado com ele, que maltratava a família, gerando vergonha moral e repressão. A mãe dava razão ao pai, impedindo a cliente de ouvir suas conversas com as amigas sobre a bebedeira do pai. É passiva, ridícula, aceitando calada tudo do marido. Culpa-a por não se posicionar. Não gosta dos pais e nem confia neles, mas, às vezes, sente pena. A psicoterapeuta avalia que a cliente não incorpora nem assimila a figura paterna às relações familiares, confundindo e desordenando suas emoções. Solicita que Vera descreva seu sentimento de pena. A cliente manifesta uma mistura de ódio, tristeza, ausência de carinho, repressão e impedimento de seus desejos (ressentimento), que lhe impede de aceitar os pais. Entretanto, "compreende-os" e os trata bem (deflexão). Repentinamente, Vera afirma que deve haver alguém ouvindo atrás da porta, pois fala alto. A estagiária sugere que a cliente confira, mas ela não aceita: "não, não, vou falar mais baixo". A psicoterapeuta propõe que Vera fale de seus sentimentos sobre o fato. A cliente diz que desconfia de que é ouvida por trás da porta, de que as atendentes sabem de seu caso e de que as estagiárias anteriores contavam os seus atendimentos a outras pessoas. Depois, diz que é "besteira" e que é boba. A psicoterapeuta não sente segurança no que Vera diz, parecendo camuflar sua desconfiança, pois não se interessa em confrontar, conferir, não assumindo o que é. Parece não se espantar com seu comportamento (na verdade, a estagiária parece espantada com as atitudes da cliente), impedindo-se, ao mesmo tempo, de se aceitar como desconfiada. A psicoterapeuta indaga se Vera acha que desconfiam dela, ao que ela diz: "sou homossexual, mas tenho comportamento feminino, porque, senão, as pessoas notam. Pára de me olhar desse jeito! Você pensa que sou maluca! Não gosto que você me olhe assim: parece que não está entendendo nada!" Pergunta se a estagiária acha tudo normal. A psicoterapeuta reflete acerca dos desejos e prioridades da cliente. Vera fala intensamente, de pé, com as mãos e os olhos cerrados: "tenho muito desejo de fazer sexo com ela!" Confessa que tem 22 anos, que é homossexual não praticante e virgem. Interrompe-se e fica em silêncio durante alguns instantes e acusa a estagiária de não a entender e de achar que ela está fantasiando.

. 6ª sessão: Vera relata, chorando, que os pais sempre a impediam de fazer o que desejava. Diz que esperou crescer e poder fazer o que quisesse, sendo, hoje, possível escolher, mas não sabe: "tenho vontade de sair de mim, de toda minha decadência, do fundo do poço. Não gosto de mim". Canta, sorrindo: "amigo é coisa p'ra se guardar...” Acrescenta: "quero te contar tudo. Gosto demais de L. Quero que ela me veja, me sinta. Ela tem carro: podemos namorar, sair. Imagino e desejo isto demais, muito". Deseja um "caminho de rosas, lindo", e que as pessoas vissem seu interior. Afirma que os "papos" da família, dos vizinhos e dos colegas são tolos e ridículos. Diz que L. a humilha e que sofre. Acrescenta que não gosta de homem, mas que gostaria de ter um só se fosse para protegê-la. A psicoterapeuta avalia que a cliente oscila entre querer e não querer, ficando sufocada, frustrada, transtornada. Suas emoções são vistas como ameaçadoras, sentindo-se insegura, mas desejando uma situação insustentável para si mesma. Reivindica e afasta-se, abandonando e revoltando-se, numa tentativa de "integração" tranqüilizadora. Em seu relatório, a estagiária avalia que esta é uma sessão de assuntos de menor relevância. (Desconsideração com as intensas vivências emocionais da cliente). Vera pede mais uma sessão durante a semana, pois tem muito que falar, e o número do telefone da psicoterapeuta, que se recusa a dá-lo. Conta que teve uma amiga do sul do país (a estagiária é desta região) que a entendia como ninguém. (Sentimentos transferenciais?) Era uma relação de amizade, pois não a desejava. Indaga: "você me acha chata, não? Me acha boba, né?” A psicoterapeuta destaca que a cliente faz considerações sistematicamente no final das sessões e que não telefonou ao NUSPA para marcar a sessão extra.

. 7ª sessão: Vera diz ter certeza de que a garota lhe corresponde através de gestos, olhares e atenções: "conheço o jeito dos homossexuais". Sente-se feliz, falando com os braços e o corpo. Levanta-se, senta-se e sorri: "ainda não falamos diretamente uma para a outra o que sentimos, mas, agora, está mais fácil". (A afirmação da cliente pode ser aplicada, também, à sua relação com a estagiária: sentimentos transferenciais?) A psicoterapeuta solicita que Vera fale do que sente, naquele momento. A cliente fica calada, faz um muxoxo, séria. Em seguida, faz uma série de perguntas sobre a estagiária: se atendia outras pessoas; quantas; se era na mesma sala; se sua especialidade era clientes homossexuais; por que escolheu atendê-la. Volta a ficar em silêncio, vira-se de lado, séria, e diz, com raiva: "J., você está aqui porque é obrigada, senão não se forma. Você não pode abandonar isto aqui. Por que não fala comigo e diz o que eu devo escolher? Você pode. Não entendo seu papel aqui: fica o tempo todo calada! Por que escolheu ser psicóloga? Quantas pessoas você tem que atender?" Levanta-se e anda de um lado a outro: "quero cuspir". (Repugnância). A psicoterapeuta aponta-lhe o cesto. "Eu posso cuspir ali?", pergunta Vera, que retorna à cadeira, cabisbaixa, e senta-se. "Na sessão anterior, fui grosseira com você, não foi?", acrescenta. A estagiária explica-lhe seu papel e expressa desagrado pelas cobranças da cliente. (Desconsideração com o pedido de desculpas de Vera). A cliente diz que gosta de estar ali, com a psicoterapeuta.

As demais sessões não foram descritas, mas a estagiária assim avalia o proces­so psicoterápico de Vera: cliente “depressiva”, angustiada e tensa. Posiciona-se como vítima. Manifesta desagrado em ouvir, desejando controlar, humilhar e diminuir os outros. (Manifestação contra-transferencial da psicoterapeuta, que personaliza ou toma para si mesma as atitudes de controle, humilhação e diminuição da cliente). Resiste e projeta para não se responsabilizar por si mesma. Apresenta sentimentos "represados", não percebendo sua relação consigo mesma, fragmentando-se, dividindo-se. (Retroflexão). Tem dificuldade de contato com seus sentimentos positivos. (A estagiária tem dificuldade de contato e de lidar com seus sentimentos negativos e com os de Vera). Há incongruência entre o que diz, faz e quer. Manifesta tendências fóbicas: "não quero olhar". Evita conscientizar-se, dissociando, alimentando ou rejeitando partes suas (Polaridades). Seu crescimento é desordenado e o campo perceptual exagerado e deturpado por fantasias sobre si mesma e os outros. Não se envolve com sua rotina, tendo idéia de que faz "por fazer". Ressente-se com a vida, os pais e a garota, que a fazem sofrer. Devido à sua baixa auto-estima, culpa todos, permanecendo inativa. Ao final de seu relatório, a psicoterapeuta sugere que a cliente continue em psicoterapia, de preferência durante o ano inteiro, com uma mesma estagiária.



Momento 9 (agosto do 1992 a fevereiro de 1993)

Vera retoma a psicoterapia em gestalt-terapia, pela primeira vez com um psicoterapeuta do sexo masculino, experiência que nos parecia interessante, havendo apenas 2 faltas. Não tive acesso ao material referente às sessões. (Infelizmente, o estagiário resistiu sistematicamente a fazer a sua própria psicoterapia, o que favoreceu com que o processo psicoterápico com a cliente se tornasse intelectualizado, superficial e pouco estimulante).



Momento 10 (abril a junho do 1993)

Vera continua seu processo psicoterápico com outra estagiária em gestaIt-tera­pia, que freqüentemente discutia suas dificuldades de relacionamento com a cliente, o que, certamente, interferiu no fato de terem acontecido apenas 9 sessões, com 5 faltas. Não tive acesso ao material de discussão sobre o caso.



Momento 11 (agosto a setembro de 1993)

Vera tenta novamente a psicanálise, mas realiza apenas 4 sessões, com 2 faltas.



Momento 12 (a partir de setembro de 1993)

Último processo psicoterápico de Vera, no NUSPA, também em gestalt-terapia, sob minha orientação. Não tive acesso ao material acerca das sessões. Entretanto, acredito que o processo psicoterápico tenha sido positivo para a cliente, pois tentou mesmo acompanhar a estagiária em psicoterapia, após sua formatura, o que acabou não acontecendo.

Há alguns registros de inscrição de Vera, no NUSPA, mas devido às suas faltas, foi desligada, terminando por desistir.



O PSICOTERAPEUTA FENOMENOLÓGlCO-EXlSTENClAL: DlLEMAS E CONFLITOS



Talvez seja um exagero de nossa parte considerar todos os processos psicote­rápicos descritos como uma experiência fracassada - como fazemos no título do texto. Entretanto, acreditamos que a saga quase interminável de Vera permite algumas considerações sobre a situação do psicoterapeuta iniciante no enfoque fenomenológico-existencial:

1. É comum a parca apreensão dos conceitos e temas do enfoque fenomenológico-existencial, bem como de seus recursos técnicos e de seu manejo;

2. Como reação a essa carência teórica e técnica, o psicoterapeuta iniciante adota freqüentemente posturas escamoteadoras de sua insegurança;

3. A ausência de realização de seu processo psicoterápico pessoal é um sério agravante da situação do psicoterapeuta iniciante, com repercussões preocupantes no acompanhamento da clientela, como o mau manejo de sentimentos negativos, tanto do psicoterapeuta quanto do cliente;

4. O não reconhecimento ou a desconsideração da ocorrência do que, em psicanálise, se costuma chamar de sentimentos transferenciais e contra-transferenciais, é uma lacuna na prática dos referidos psicoterapeutas, mesmo na dos mais experientes, com a conseqüente ausência de uma metodologia (não psicanalítica) condizente com o enfoque fenomenológico-existencial;

5. Descompromisso e pouca disponibilidade com a pessoa do cliente são comuns, voltando-se mais o psicoterapeuta iniciante a seus interesses ou a seu vínculo com a tarefa ou a instituição;

6. A carência de auto-suporte interno leva o psicoterapeuta iniciante a buscar um apoio excessivo no uso de técnicas, em detrimento do desenvolvimento de uma atitude compreensiva.

O psicoterapeuta iniciante vê-se diante de uma lacuna angustiante: ao mesmo tempo em que se percebe carente quanto ao referencial teórico que fundamenta a sua prática, é inexperiente quanto a vivências pessoais e profissionais que possam proporcionar maior segurança.

É comum que se enfatize a importância essencial do embasamento teórico do psicoterapeuta - e temos nos incluído entre aqueles que têm lutado por isso. É menos freqüente que se discuta os riscos de um apego à teoria, ou seja, a tendência de muitos psicoterapeutas iniciantes a servir à teoria como uma defesa contra sua própria insegurança, adotando uma atitude formal, intelectual ou perfeccionista. "O terapeuta, desta forma, evita pensar no vínculo com o pacien­te, e acredita seriamente que os seus aspectos emocionais de­vem ser neutralizados e que só o seu intelectual deve existir para a compreensão do outro" (Cardoso, 1985, p. 14).

Esses problemas nos remetem à personalidade, à maturidade pessoal e profis­sional e ao autoconhecimento como variáveis essenciais à boa condução do processo psicoterápico. É freqüente a idealização da figura do psicoterapeuta pelo cliente, que, associada a uma auto-idealização por parte do primeiro, pode levar o psicoterapeuta iniciante a tentar corresponder a uma imagem onipotente e inacessível, ou a aceitar uma postura impotente e insignificante. Essas atitudes podem levar o psicoterapeuta ­iniciante a um encantamento com o próprio poder, ou a tentativas de sedução ou de punição do cliente, por exemplo.

A postura onipotente, que pode se apresentar através de arrogância (que busca aparentar eficiência) ou de uma excessiva disponibilidade (que visa a atender a qualquer expectativa, necessidade ou exigência do cliente, com o objetivo de ser reconhecido e admirado), esconde aparentemente a insegurança e a inexperiência do psicoterapeuta iniciante. Porém, como o processo psicoterápico não é um espaço de realização de desejo (nem do cliente, e, muito menos, do psicoterapeuta), mas de conscientização do desejo, o processo, muitas vezes, se revela empobrecido, frio ou mesmo contraproducente.

Numa outra polaridade, encontramos a postura impotente, em que o psicotera­peuta mostra-se inoperante, por se sentir incapaz de lidar com emoções, experiências ou conteúdos - particularmente os negativos - do cliente, que lhe parecem acima das possibilidades de continência do psicoterapeuta. O psicoterapeuta iniciante mostra-se, muitas vezes, compreensivo, atencioso e disponível, mas não consegue intervir, propor ou aprofundar as questões reveladas pelo cliente, pois isso lhe parece um risco excessivamente perigoso.

Ambas as posturas - onipotente e impotente - escamoteiam as reais possibilidades e os limites do psicoterapeuta e trazem à tona seu dilema entre a técnica e a pessoa do técnico. Conforme Rojas-Bermúdez (1977), "pretender que um instrumento resolva tudo, é persistir numa valorização ingênua, que servirá mais para proteger a própria onipotência do que o instrumento" (p. 90). Assim, o psicoterapeuta - freqüentemente busca suporte externo para seus dilemas, esquecendo-se de que sua própria pessoa é seu principal instrumento de trabalho, para além das técnicas e mesmo das teorias.

As psicoterapias fenomenológico-existenciais surgiram, em grande parte como uma reação ao positivismo, adotando, em muitos casos, posturas irracionalistas, antiintelectuais ou intuitivistas. Entretanto, se o psicoterapeuta deve estar plenamente presente no processo psicoterápico, aí deve estar incluída a sua racionalidade, sem, com isso, excluir as vivências emocionais e intuitivas propiciadas pela psicoterapia.

Cardoso (1985) aponta o fato de que muitos psicoterapeutas iniciantes vivenci­am sintomatologias semelhantes às de seus clientes, o que gera dificuldade de contato ou envolvimento extremo, numa tentativa de resolver seus problemas através do outro, ou inadequação das intervenções, levando freqüentemente à desistência do processo psicoterápico por parte do cliente, ou, por vezes, a um abandono (concreto ou através de atitude de distanciamento) por parte do psicoterapeuta. Nestes casos, é inegável a importância do próprio processo psicoterápico do psicoterapeuta, junto à supervisão de profissionais experientes e competentes, bem como o necessário envolvimento com o estudo teórico do psicoterapeuta iniciante, no que se refere ao enfoque fenomenológico-existencial.

Guedes (1985) destaca que

"... ser terapeuta é um privilégio. (...) [Sua]... arte é 'tocar' as pessoas. 'Tocar' pela palavra, gesto, afeto, expressão, olhar, mo­vimentos etc., nos seus pontos sensíveis, adormecidos, cristalizados, encantados. Eu consigo 'tocar' quando fui ou estou sendo to­cado por essa mesma pessoa" (p. 15).

Essa possibilidade de tocar gera, muitas vezes, no psicoterapeuta iniciante, um temor ou um encantamento com seu próprio poder, e encobre a sua polaridade oposta, ou seja, o fato de que, freqüentemente, somos tocados por nossos clientes. Acreditamos que grande parte das dificuldades dos psicoterapeutas iniciantes diga respeito a um desconhecimento e a uma confusão quanto a como lidar com os sentimentos gerados pelos e nos clientes, fator propulsor e, ao mesmo tempo, complicador da relação psicoterápica, bem como à parca conscientização das tarefas da psicoterapia e do psicoterapeuta.

A tarefa da psicoterapia, conforme Cardoso (1985), inclui o conhecimento teóri­co, a vivência técnica, o vínculo autêntico com o cliente, a satisfação com o trabalho, além do desenvolvimento pessoal do outro e de si mesmo como seres humanos. Portanto, requer do psicoterapeuta uma síntese pessoal da teoria e da técnica, de forma a não escravizá-lo nem a uma nem à outra. Um exemplo desta não escravização à teoria e à técnica diz respeito às regras do processo psicoterápico, um freqüente motivo de "empacamento" do psicoterapeuta iniciante. Apesar de essenciais para um claro vínculo entre psicoterapeuta e cliente, as normas têm que ser, de fato digeridas e assimiladas pelo psicoterapeuta, que precisa dar-lhes um sentido, flexibilizá-las e contextualizá-las.

Podemos definir a psicoterapia como um processo interpessoal que envolve a relação entre psicoterapeuta e cliente, através de contatos verbais e não verbais, com objetivo definido de auxilio às dificuldades emocionais do cliente, visando à sua integração à vida (Cardoso, 1985). A definição dos objetivos específicos do processo psicoterápico é uma variável importante, na medida em que o cont(r)ato terapêutico, se mal definido, mal estruturado ou mal esclarecido, pode levar a fracassos consideráveis. A integração e a vinculação do processo psicoterápico com a vida pessoal do cliente, por sua vez, é uma meta básica, pois, de outra forma, corremos o risco de criar uma vivência dicotômica, na qual a teoria não se coaduna com a prática, as sessões são incongruentes com as experiências “fora" da psicoterapia e o espaço psicoterápico equivale a um "paraíso" ilusório e idealizado ou a um "depósito" seguro mas inócuo, e a vida do cliente a um "inferno" ameaçador e insuportável.

O uso da técnica deve ser cuidadoso e fundamentado numa estratégia clínica que sintetize a teoria e a prática do psicoterapeuta e o vinculo entre vivência, compreensão, pensamento e ação de psicoterapeuta e cliente. A técnica jamais deve ser proposta como um truque para resolver problemas, mas como um recurso facilitador da conscientização do cliente, utilizado quando ele já se dirige a algum tipo de ação determinada a partir de sua necessidade e de sua disponibilidade.

A literatura teórica é um ponto essencial de apoio e de referência ao psicotera­peuta, mas não basta por si mesma, devendo sempre ser adotada com flexibilidade, fundamentando e sendo fundamentada pela prática profissional, pelas vivências pessoais, pela supervisão e pela psicoterapia do psicoterapeuta. Neste sentido, as atitudes e as posturas do psicoterapeuta "não podem ser ensinadas, mas podem ser aprendidas. Estas atitudes básicas são: fé, confiança, aceitação e respeito” (Cardoso, 1985, p. 21). Fé e confiança se referem à crença no potencial do cliente de encontrar seu próprio caminho. Aceitação e respeito são atitudes compreensivas fundamentais na facilitação desta busca do cliente, através do encontro existencial propiciado pela psicoterapia. Assim, as atitudes do psicoterapeuta são essencialmente educativas, visando não apenas à apreensão de determinados conteúdos, mas de uma "pedagogia da vida" (Boris, 1992, p. 62).

Bleger (1975) considera que o psicoterapeuta vivencia grande ansiedade, pois se confronta com um objeto de estudo semelhante a si mesmo. Isto nos reporta às elaborações de Buber (1979; 1982) sobre as atitudes eu-tu e eu-isso, como posturas básicas do psicoterapeuta, que se relaciona com o cliente enquanto pessoa (presentificação) e, ao mesmo tempo, observa o outro e a si mesmo (distanciamento), reconhecendo sua alteridade (Zuben, 1984; Boris, 1987). Neste sentido, "o importante da relação EU-TU é exatamente o 'entre' que existe entre o EU e o TU. No 'entre' cristaliza-se o clima necessário para que as duas partes possam integrar-se num clima educacional, terapêutico, ou clima de relação" (Fonseca Filho, 1980, p. 41).

Tratamos anteriormente das contingências e das vicissitudes comuns ao psicotera­peuta e ao cliente: são dados de humanidade que os aproximam, mas que podem confundir os parceiros da relação psicoterápica. Devemos destacar que aquilo que os diferencia é a atitude compreensiva, um esforço racional e emocional do psicoterapeuta para compreender a si mesmo e ao outro, reconhecendo seus equívocos e seus sentimentos em relação ao cliente e àquilo que ambos representam (transferência e contra-transferência):

“a grande habilidade do terapeuta, então, seria a de poder perce­ber os aspectos transferidos em sua pessoa e, por outro lado, po­der conhecer a realidade dos seus sentimentos, para que não se mesclem aos do paciente, o que tem sido apontado como causa freqüente de insucesso da terapia" (Cardoso, 1985, p. 21).

É importante ter em mente que nem todos os sentimentos vivenciados na rela­ção psicoterápica são transferenciais. Da mesma forma, devemos reconhecer a transferência como um fenômeno que ocorre freqüentemente nas relações humanas, particularmente na psicoterapia, e que as abordagens fenomenológico-existenciais ainda não desenvolveram uma metodologia própria que dê conta de tal fenômeno. Talvez um caminho seja o proposto por Amatuzzi (1989):

"‘trata-se não de interpretar a transferência mas de interpretar na transferência'. A diferença entre o a (transferência) e o na (transfe­rência) é exatamente a diferença entre entrar ou não na relação. E o termo 'interpretação' pode ser entendido no sentido em que se identifica com a própria expressão do terapeuta (compreensiva da presença total e Intencional do cliente) e, portanto, interpretação fundadora do terapeuta exatamente em sua vivência da relação. É exatamente isso que, aqui em nossa linguagem, estamos deno­minando de resposta (e o fazemos também para não confundi-Ia com uma interpretação distanciada e distanciadora, inteIectuaI, o que na realidade é a grande tentação de quem se pretende entendido em psiquismo humano" (p. 176).

Amatuzzi (1989) adverte, ainda, que "há lugar, apesar de tudo, para interpretações intelectuais, mas desde que o sentido do todo da relação não seja dado por seme­Ihantes interpretações, mas pelo vai-e-vem de respostas autênti­cas baseadas num ouvir profundo" (nota de rodapé, p. 176).

As várias questões levantadas acima nos levam a uma primeira conclusão: ser psicoterapeuta fenomenológico-existencial requer uma síntese pessoal própria de um conjunto de atitudes desenvolvidas a partir de atividades ligadas à vida do psicoterapeuta, entre as quais se incluem a supervisão de profissionais competentes e experientes, a inclusão em um processo psicoterápico próprio, a abertura a experiências pessoais e profissionais, a inserção em processos de formação ou treinamento sistemáticos e o estudo dedicado dos fundamentos e temas do enfoque fenomenoIógico-existencial.

Discutiremos, em seguida, as origens e alguns temas e fundamentos do enfoque fenomenológico-existencial, como um esboço àqueles psicoterapeutas iniciantes que pretendem enveredar pelas questões desta abordagem.



A FILOSOFIA FENOMENOLÓGICO-EXISTENClAL: UM CAMlNHO



Binswanger & Boss (in: Millon [org.], 1979) nos esclarecem acerca das origens do movimento fenomenológico-existencial em psicologia e na psicoterapia:

“... a orientação de pesquisa existencial em psiquiatria surgiu da insatisfação com os esforços prevalentes para obter uma compre­ensão científica na psiquiatria... Como ciências, a psicologia e a psicoterapia estão, sem dúvida, preocupadas com o 'homem', não primariamente com o homem mentalmente doente, e sim com o homem em si mesmo. A nova compreensão do homem, que de­vemos à análise da existência de Heidegger, se baseia na nova concepção de que o homem não é mais compreendido em termos de alguma teoria - seja mecanicista, biológica ou psicológica - mas em termos de uma elucidação puramente fenomenológica da estrutura total ou articulação total da existência como SER-NO-MUNDO (in-der-Welt-sein). (...) A psicoterapia em bases analítico­existenciais investiga a história-de-vida do paciente a ser trata­do...", [mas] "... não explica esta história-de-vida e suas idiossin­crasias patológicas de acordo com os ensinamentos de qualquer escola de psicoterapia, ou por meio de suas categorias preferi­das. Em seu lugar, compreende esta história-de-vida como modi­ficações da estrutura do ser-no-mundo do paciente..." (p. 166-167).

May (1958a) afirma ter havido grande resistência ao enfoque fenomenológico-e­xistenciaI, particularmente nos Estados Unidos, devido à tendência predominante, voltado excessivamente para a técnica, pois a orientação fenomenológico-existenciaI não busca técnicas enquanto tais, mas uma perspectiva compreensiva que possa clarear todas as técnicas particulares:"em uma palavra, o existencialismo é o esforço por compreender o homem eliminando a cisão entre sujeito e objeto que torturou o pensamento e a ciência ocidentais desde pouco depois do Re­nascimento" (p. 29).

A preocupação com a existência humana na filosofia é antiga, podendo ser en­contrada nos diálogos de Sócrates, nas auto-análises psicológicas profundas de Santo Agostinho e no esforço de Pascal de encontrar um lugar para "as razões do coração que a razão não conhece" (May, 1958a, p. 29). Mas essa preocupação surge de forma mais forte e profunda no ataque violento de Kierkegaard contra o racionalismo vigente em seu tempo, particularmente contra a idéia de sistemas em Hegel.

O existencialismo é a filosofia da existência, termo que, como a palavra exprime, provém de “'existir', derivado do verbo latino 'ex-sistere', [que] significa literalmente: sair, emergir, aflorar" (May, 1958a, p. 30), manifestar-se:

"no existencialismo contemporâneo, esse termo designa o rnodo de ser próprio do existente humano, a realidade humana, naquilo que ela tem de absurdo, deliberado (pela tomada de consciência) e de irredutível à consciência (contingência e facticidade)” (Japi­assú & Souza Filho, 1993, p. 92).

Alguém pode perguntar porque estamos nos referindo à filosofia. Mas quando le­mos a análise profunda de Kierkegaard (1979) acerca da ansiedade e do desespero, bem como as considerações intuitivas de Nietzsche (1978; s.d.) sobre o ressentimento, a culpa e a hostilidade como conseqüências da repressão emocional, surpreendemo-nos que constituam análises psicológicas de mais de 100 anos, e não obras contemporâneas.

Kierkegaard (1979) tratou sobre a ansiedade 50 anos antes de Freud, discutin­do, também, sobre a depressão e o desespero produzidos pela auto-alienação, classificando-a conforme tipos e graus de intensidade. Também, analisou a autoconsciência, os conflitos interiores, a perda do eu, e mesmo os problemas psicossomáticos. Definiu a ansiedade como o "verdugo da liberdade", acrescentando que "a ansiedade é a realidade da liberdade em estado de potencialidade anteriormente a materializar-se essa liberdade" (May, 1958b, p. 76).

Dez anos antes que Freud iniciasse suas obras, Nietzsche (1978) descrevia, em termos que prefiguram conceitos psicanalíticos posteriores, a transformação das forças pulsionais represadas, no indivíduo, em ressentimento, ódio de si, hostilidade e agressão. Sua concepção de "vontade de potência" (Nietzsche, s.d.) implica o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo e que elas sejam vivenciadas intensamente em sua existência particular e concreta, pois o impulso vital é a vivência da própria potência.

Kierkegaard (1979) e Nietzsche (1978; s.d.) atribuíam à "enfermidade da alma" do homem ocidental uma profunda e extensa morbidez devido a uma falha radical em suas relações consigo mesmo. Nietzsche declarou que "o verdadeiro problema... está em que temos perdido o amor do homem junto com o temor do homem: temos perdido a confiança no homem e, na realidade, a vontade frente ao homem" (May, 1958a, p. 43); ou seja, a desintegração psíquica e emocional, para os dois filósofos, é um produto da perda de fé do homem em sua dignidade, em sua humanidade.

Podemos, aqui, apresentar alguns temas existenciais, visando a pôr o psico­terapeuta iniciante em contato com questões freqüentemente abordadas na prática clínica.



TEMAS EXISTENCIAIS



Um problema difícil e pouco compreendido é a questão do nada ou não-ser (Heidegger, 1979; Sartre, 1978). O homem traz em si uma espécie de nada, que equivale à sua liberdade, pois lhe permite fazer escolhas na realização de seu projeto, e, assim, nadificando (tornar nada) outras opções, decisões estas que lhe causam angústia.

A angústia é um dos temas mais característicos e mais presentes nos processos psicoterápicos de cunho fenomenológico-existencial. A importância da angústia se deve ao fato de que ela propicia uma vivência antecipada da própria morte. Podemos lembrar várias descrições de clientes acerca de suas angústias: "sinto um vazio"; "é como se eu tivesse um oco dentro de mim"; "tenho uma sensação de sufoco dentro do peito"; "eu sou um nada".

Um dos temas existenciais mais temidos e incômodos é o da morte, a aniquiladora dos projetos humanos, tornando-os nada. Por outro lado, vários existencialistas afirmam que o confronto com a morte proporciona à vida sua realidade mais positiva, tornando a existência mais plena, real e concreta, destacando a singularidade do homem, individualizando-o e fazendo-o compreender a potencialidade do Ser.

Para May (1958b),

"talvez a forma mais extensa e onipresente que adota em nossos dias nossa repugnância a enfrentarmo-nos com o não ser seja o conformismo, essa tendência do indivíduo a deixar-se absorver pe­la maré das atitudes e respostas coletivas, a perder-se na humanidade impessoal com a correspondente perda de sua própria consciência e potencialidades e de quanto o caracteriza como ser original e único. Com este recurso o indivíduo escapa momentaneamente da ansiedade de não ser, mas a preço de anular suas for­ças e seu sentido de existência" (p. 72).

A ansiedade é considerada por May (1958b) como uma característica ontológica humana, inerente à sua própria existência, e não apenas enquanto um afeto como outro qualquer: "a ansiedade é a experiência da ameaça iminente de não ser” (p. 73). Goldstein afirmava que "a ansiedade não é algo que 'temos', mas algo que 'somos’” (May, 1958b, p. 74), uma ameaça ao eu não exclusiva dos psicóticos, atingindo tanto o caráter neurótico quanto o normal. Surge quando o homem percebe ameaça de ruína à sua existência, de que ela possa fundir-se com o seu mundo, convertendo-se em nada. A proposta do enfoque fenomenológico-existencial é devolver à ansiedade sua força original. A ameaça da ansiedade, que provoca angústia e pavor, por outro lado, significa a existência de uma potencialidade de plenitude. Para tanto, requer a destruição da segurança, o enfrentamento de riscos e a busca da novidade e da excitação, ou seja, que abandonemos o conformismo, o tédio e a apatia.

Para May (1958b), "a culpa é a condição da pessoa que renega essas potencialidades e renuncia a realizá-las. Quer dizer que a culpa é também uma característica ontológica da existência humana" (p. 76). Descreve algumas peculiaridades da culpa ontológica:

- na medida em que todos nós nunca desenvolvemos plenamente nossas potencialidades, e, conseqüentemente, deformamos em certo grau a realidade, é uma condição que, de um modo ou de outro, afeta qualquer pessoa;

- origina-se na própria consciência ou, dito de outra maneira, do fato de vermo-nos como pessoas capazes de escolher ou de nos omitirmos. Neste sentido, não provém de proibições ambientais ou da introjeção de normas e hábitos culturais;

- portanto, a culpa ontológica difere da culpa neurótica ou mórbida, mas, se não for aceita ou se for recalcada, pode degenerar em culpa neurótica.



À GUISA DE CONCLUSÃO: CONSEQÜÊNCIAS PARA A PRÁTICA PSlCOTERÁPICA



Os psicoterapeutas fenomenológico-existenciais buscam descobrir novamente o homem em suas inter-relações pessoais com seu mundo e favorecer a revelação dos sentidos que este mundo adquire para este homem. Para tanto, acreditam que a pessoa e seu mundo constituem uma totalidade estrutural e unitária, expressa através da articulação das palavras "ser-no-mundo". Portanto,

“o mundo é a estrutura de relações significativas em que existe uma pessoa e em cuja configuração toma parte. Assim, o mudo abarca os eventos do passado que condicionam minha existência e toda a imensa variedade de influências determinantes que atuam sobre mim" (May, 1958b, p. 85).

Nesse sentido, podemos concluir que o homem, enquanto ser-no-mundo, é influenciado por suas experiências passadas, mas, também, pelos eventos atuais e pelas expectativas em relação a seu futuro, sendo capaz de interferir sobre suas condições de vida, ou seja, utilizar seu potencial de transcendência da situação imediata para construir seu projeto.

Para compreender o ser humano na civilização ocidental, o psicoterapeuta fe­nomenológico-existencial deve enfrentar dois grandes obstáculos: a ênfase comum e exagerada que é dada à técnica e a tendência fácil e corriqueira de considerar o homem como um objeto manipulável, analisável e mensurável:

"a teoria existencialista sustenta exatamente o contrário, a saber que a técnica segue a compreensão. A tarefa substancial e a responsabilidade do terapeuta consiste em compreender o paciente como um ser e como um ser-no-mundo. Todos os problemas técnicos estão subordinados a essa compreensão; sem ela, os recursos técnicos são impertinentes no melhor dos casos, e no pior um procedimento para sistematizar a neurose (...) Isto não é desme­recer os méritos de uma técnica disciplinada, mas dar-lhe a pers­pectiva que necessita" (May, 1958b, p. 105.

O enfoque fenomenológico-existencial não é uma forma de trabalho psicoterápi­co simplesmente intuitivista, "solta no espaço", à mercê das percepções, sensações e insights do psicoterapeuta. Da mesma forma, não é uma abordagem teoricista, mecanicista ou tecnicista. Suas proposições geram algumas conseqüências quanto à prática psicoterápica:

1. Trata-se menos de desenvolver um arcabouço teórico e técnico que dê conta das várias situações por que pode passar o ser humano, mas de uma atitude compreensiva das condições da existência humana;

2. A existência de uma grande variedade de técnicas, pois parte, antes de tudo, dos dados de existência ou da situação concreta que se constrói na relação entre psicoterapeuta e cliente. O uso das técnicas deve ser flexível e elástico, para poder variar conforme a situação, o cliente e a fase do processo psicoterápico;

3. As técnicas necessariamente devem derivar do contexto imediato da relação psicoterápica, sendo construídas com a cooperação do cliente, nunca como propostas pré-elaboradas pelo psicoterapeuta;

4. Apesar do reconhecimento das representações simbólicas (transferência e contra-transferência) das figuras do psicoterapeuta e do cliente, a compreensão fenomenológico-existencial da relação psicoterápica atribui importância significativa à presença real destes parceiros enquanto pessoas. Entretanto, é necessário, ainda, o desenvolvimento de uma metodologia que dê conta destas representações simbólicas a partir do próprio enfoque fenomenológico-existencial;

5. Finalmente, a abordagem fenomenológico-existencial se caracteriza pelo compromisso, não apenas com algo vagamente bom ou eticamente aconselhável, mas como um pré-requisito necessário para buscar os sentidos da existência do cliente. É inegável o poder do psicoterapeuta sobre aqueles que o buscam. O uso deste poder deve ser comprometido com o serviço ao cliente, não para satisfazer seus desejos - e, muito menos, os do psicoterapeuta - mas para favorecer a conscientização dos desejos do cliente.



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